O Colapso da Complexidade Irredutível e da Informação Complexa Especificada
1. Introdução: O Desafio Neocriacionista ao Naturalismo Metodológico
O Design Inteligente (D.I.) emergiu no final do século XX como a mais recente manifestação do criacionismo, buscando desafiar o consenso da biologia evolutiva. O D.I. postula que certas características do universo e da vida são melhor explicadas por uma causa inteligente do que por processos não direcionados, como a mutação aleatória e a seleção natural. Embora se apresente como uma teoria científica alternativa, o D.I. é amplamente classificado pela comunidade científica e pelo direito constitucional (e.g., Kitzmiller v. Dover Area School District, 2005) como neocriacionismo.
Este artigo de revisão visa analisar e catalogar criticamente as principais refutações científicas, matemáticas e filosóficas que desmantelaram os dois argumentos centrais do D.I.: a Complexidade Irredutível (CI) de Michael Behe e a Informação Complexa Especificada (CSI) de William Dembski. Através da revisão da literatura especializada, demonstraremos que o D.I. falha em cumprir os requisitos do naturalismo metodológico e carece de poder preditivo ou explicativo, sendo, portanto, uma proposta não científica.
2. Complexidade Irredutível (CI): O Mito do Relógio quebrado
2.1. A Formulação do Argumento por Michael Behe
A CI é a espinha dorsal biológica do D.I., articulada por Michael Behe em Darwin's Black Box (1996). Behe define CI como:
Um único sistema composto de várias partes bem combinadas e interativas que contribuem para a função básica, onde a remoção de qualquer uma das partes faz com que o sistema pare efetivamente de funcionar.
Behe conclui que sistemas de CI (como o flagelo bacteriano ou a cascata de coagulação sanguínea) não poderiam ter evoluído pelo gradualismo darwiniano, pois qualquer precursor que perdesse uma peça seria não funcional e não selecionável.
2.2. Refutação Biológica: Co-opção e Redutibilidade Funcional
A literatura científica respondeu demonstrando que os sistemas citados por Behe não são irredutíveis, mas evoluem através de mecanismos que implicam funcionalidade em subconjuntos e co-opção (co-option) de módulos preexistentes.
O exemplo mais refutado é o flagelo bacteriano. Demonstrou-se que o sistema de secreção Tipo III (TTSS) é um subconjunto funcionalmente completo do flagelo. O TTSS atua como um sistema de injeção de proteínas em células hospedeiras, sendo selecionável por essa função distinta.
Doolittle e Zhaxybayeva (2007), em "Evolution: Reducible Complexity — The Case for Bacterial Flagella," confirmam que: "Uma redução do flagelo bacteriano (a perda de sua função motora, mas não de sua estrutura de secreção) não torna a bactéria menos funcional [...] o flagelo é redutivelmente complexo." A existência de um subconjunto útil (TTSS) prova que o sistema não surgiu em um único salto, mas por meio da exaptação de componentes com funções originais.
Depew (1998), em "Intelligent Design and Irreducible Complexity: A Rejoinder," argumenta que Behe ignora a capacidade da evolução de reciclar e refuncionalizar componentes preexistentes, permitindo que a complexidade aumente sem a necessidade de um estágio "não funcional".
2.3. O Design Subótimo e a Crítica Filosófica
A refutação é complementada pela crítica do Design Subótimo. Se o design fosse inteligente, esperar-se-ia otimização. Contudo, a biologia está repleta de "remendos" e imperfeições (como o nervo laríngeo recorrente da girafa).
H. Allen Orr (1996), em "Darwin vs. Intelligent Design (again)," aponta que estas falhas só fazem sentido sob a luz das restrições da história evolutiva, não de um projeto inteligente a priori. A crítica do design subótimo, também reforçada por Massimo Pigliucci (2001) em "Design Yes, Intelligent No," demonstra que a CI é uma falha da imaginação, incapaz de contemplar caminhos evolutivos indiretos.
3. Informação Complexa Especificada (CSI): A Falácia Estatística
3.1. A Formulação do Argumento por William Dembski
O argumento de Informação Complexa Especificada (CSI), proposto por William Dembski, visa provar o design através da matemática e da teoria da informação. O D.I. seria inferido se um evento (e.g., a sequência de DNA) fosse Complexo (com probabilidade de ocorrência extremamente baixa, menor que 1 em 10^150) e Especificado (correspondendo a um padrão independente). O Filtro Explicativo de Dembski conclui pelo Design após eliminar as causas de Necessidade e Acaso.
3.2. Refutação Matemática: A Trivialidade da Especificação
A crítica mais forte à CSI concentra-se na ambiguidade e na aplicação pós-hoc do conceito de "especificação".
Elsberry e Shallit (2011), em "Information theory, evolutionary computation, and Dembski’s 'complex specified information'," demonstram que a "especificação" de Dembski é frequentemente aplicada após o evento: qualquer sequência de DNA existente torna-se automaticamente "especificada" por ela mesma.
O argumento exige um critério de especificação independente e a priori. A falha do D.I. em fornecer tal critério torna a CSI tautológica, incapaz de distinguir o design de um resultado complexo puramente aleatório.
3.3. Refutação Estatística: Ignorando a Seleção Não Aleatória
O argumento da Complexidade de Dembski colapsa ao ignorar a natureza cumulativa e não aleatória da seleção natural.
Olofsson (2008), em "Intelligent design and mathematical statistics: a troubled alliance," critica o uso indevido da probabilidade. O D.I. comete a falácia da equiprobabilidade, tratando os estados intermediários evolutivos como igualmente prováveis.
A Seleção Natural é um processo de busca não aleatória. Olofsson mostra que mutações que conferem aptidão são fixadas, aumentando drasticamente a probabilidade do próximo passo evolutivo e, assim, do evento final. O cálculo de Dembski ignora as enormes quantidades de tentativas e erros ao longo do tempo evolutivo.
Häggström (2007), em "Intelligent design and the NFL theorems," refuta o uso dos Teoremas No Free Lunch (NFL) por Dembski. O teorema é mal aplicado, pois a evolução não precisa ser um algoritmo de busca eficiente em todos os problemas possíveis, apenas naquele nicho ecológico específico, o que não é contradito pelos teoremas NFL.
4. Conclusão: O D.I. como Pseudociência
A revisão da literatura demonstra que os dois pilares do Design Inteligente foram decisivamente refutados no domínio científico e acadêmico.
O D.I. falha metodologicamente ao:
Violar o Naturalismo Metodológico: O postulado de um Designer Inteligente introduz uma causa sobrenatural/não observável, abandonando o princípio de que fenômenos naturais têm causas naturais.
Ser Infalsificável: O D.I. não propõe mecanismos testáveis e carece de poder preditivo, limitando-se a preencher lacunas do conhecimento atual com uma causa ad hoc.
A literatura confirma que o D.I. representa um desafio não científico, mas sim ideológico, à biologia moderna. Sua incapacidade de resistir ao escrutínio empírico, estatístico e filosófico estabelece a validade e o consenso da teoria evolutiva, confirmando que o Design Inteligente é uma proposta pseudocientífica.
Referências
Depew, D. (1998). Intelligent Design and Irreducible Complexity: A Rejoinder. Rhetoric & Public Affairs, 1(4), 571-578.
Doolittle, W. F., & Zhaxybayeva, O. (2007). Evolution: Reducible Complexity — The Case for Bacterial Flagella. Current Biology, 17(13), R510-R512. - Abstract - www.cell.com / www.ncbi.nlm.nih.gov - PDF
Elsberry, W. R., & Shallit, J. (2011). Information theory, evolutionary computation, and Dembski’s “complex specified information”. Synthese, 178(2), 237-270.
Fitzhugh. Fact, theory, test and evolution. Zoologica Scripta (2007) vol. 0 (0) pp. 071027215047001-??? - onlinelibrary.wiley.com - 1463-6409.2007.00308.x
Häggström, O. (2007). Intelligent design and the NFL theorems. Biology and Philosophy, 22(2), 217-230.
Olofsson, P. (2008). Intelligent design and mathematical statistics: a troubled alliance. Biology and Philosophy, 23(4), 545-553.
Pigliucci, M. (2001). «Design Yes, Intelligent No: A Critique of Intelligent Design Theory and Neocreationism». Skeptical Inquirer, 25(5).
Pigliucci, M. "Secular Web Kiosk: Design Yes, Intelligent No: A Critique of Intelligent Design Theory and Neo-Creationism". Archived from the original on 2010-01-05.
Orr, H. A. (1996). Darwin vs. Intelligent Design (again). Boston Review (Review of Darwin's Black Box).
Palavras-chave
#BiologiaEvolutiva #DesignInteligente #RefutacaoDI #ComplexidadeIrredutível #FilosofiaDaCiência #CienciaContraPseudociencia #Ceticismo

Nenhum comentário:
Postar um comentário