sexta-feira, 9 de junho de 2017

Casais e pelos

Ouvi num programa de notícias numa rádio uma argumentação por parte de um dos âncoras que é exemplo de um erro muito comum. Aproximadamente, a primeira parte:

“Hoje existem 7 bilhões de pessoas no mundo. No final dos anos 60, eram 3,5 bilhões. Se recuarmos mais no tempo, teremos 1 bilhão. Aos tempos de Jesus Cristo, teríamos 500 milhões. Recuando ainda mais no tempo, chegaremos a 100 milhões, 10 milhões, 1 milhão, centenas de milhares, dezenas de milhares, milhares, centenas e finalmente, chegaremos a um único casal.”


Ilustração para um futuro texto. - Population Growth: Essay on Population Growth - www.yourarticlelibrary.com


A explanação acima, de uma lógica matemática rígida, pitagórica, euclidiana, aristotélica, diria até newtoniana, é um exemplo de que  muitas pessoas não entendem como são as populações dos seres vivos e questões genéticas envolvidas, muito menos, sua relação com o processo evolutivo, e por um motivo muitas vezes de uma fé pessoal e de grupo, ou uma dogmatização de como se dê a reprodução dos seres vivos. Exatamente devido a esse erro que coloquei acima quatro pensadores com seu valor, imenso, em Matemática e Lógica, além de um caso em Física, mas pouco valor e alguns erros em outros campos, e alguns desastres em tratando-se de seres vivos.
Chegou-se, no caso do radialista, a acrescentar-se a nítida ‘falsa proclamação de vitória”:
“Esta é a verdade factual.” (Ou expressão soberba de mesma natureza, e como sempre ao final, depois de bem tratada, ridícula.)

Primeiro, que não necessita-se chegar por esse “descenso” a um casal, e tal é uma peculiaridade dos mamíferos, muito clara na natureza em animais como os leões ou os mais diversos ungulado – conhecer cavalos e gado bovino basta para saber-se isso. Poderia se chegar, pela mesma lógica rígida, a um primeiro macho e um conjunto de fêmeas miraculosamente criadas, e aqui, biologicamente, já esconde-se um segredo de um raciocínio realmente - desculpe pela redundância - biológico.

Onde se pode chegar, biologicamente pensando, e amparado no que seja o processo evolutivo, é a uma população de hominídeos, lá por um tanto antes de 200 mil anos atrás, em plena savana africana, onde um macho ou uma fêmea passaram a ter determinadas características não mais transmissíveis além de um certo grupo muito limitado dentro dessa população, e transmissíveis mais e mais a um crescente número de descendentes, até o momento que formaram uma população completamente distinta da original. Teria ocorrida uma especiação, a separação de uma população de uma espécie em um par de novas populações as quais não são mais intercruzáveis (o termo é lamentável, mas explica bem a questão).

Recuando-se mais no tempo, temos mais remotas populações ancestrais, de hominídeos em hominídeos de nosso passado, até o momento que não existe propriamente o que chamamos de hominídeo, e sim, um primata antropomorfo, como os chimpanzés e seus ancestrais, os quais são ancestrais apenas dos chimpanzés, e não dos hominídeos, pois já temos dois ramos maiores da árvore evolutiva que nos une, humanos e chimpanzés.

Mais atrás, o mesmo para nós, os chimpanzés e os gorilas. Aqui, já estamos lá pelos 6 milhões de anos no passado, assim como para os chimpanzés, estávamos unidos em população lá pelos 3 milhões de anos no passado. Ainda mais remotamente, teríamos uma população em comum com os ancestrais dos orangotangos, e recuando-se, com os gibões, e em dado momento, com todos os chamados “primatas do velho mundo”, com seus lábios superiores contínuos, não fendidos. O raciocínio e os simples fatos biológicos seguem até o demais primatas do mundo, os lêmures e os demais protoprimatas, e em determinado momento, com os roedores e finalmente, estranhos insetívoros (aos olhos de um observador atual), e o processo seguiria  até termos a árvore inteira de todos os seres vivos conhecidos, com os quais temos relações na genética.

Nunca houve “um primeiro casal”, e aliás, chega-se ao tempo que sequer um casal era necessário. Muito depois desse momento, retornando rumo ao presente, sequer “paríamos”, pois nossa população colocava ovos, primeiro, moles no fundo de lâminas d’água rasas, depois, grudados em massas nas margens mais próximas das terras secas, depois, com cascas secas em sabe-se lá especificamente que tipo de ninhos, e nem dentes diferenciados tínhamos.

Populações após populações nos modificamos e nos separamos de outras populações, pois a natureza não nos classifica, ela nos organiza em populações, e essas mudam com o tempo, podem durante um tempo se intercruzar, mas mais cedo ou mais tarde, as diferenças as tornam incompatíveis, tão incompatíveis como seria eu poder reproduzir-me num “casal” como com algo como uma couve-flor, e num determinado momento no passado, percebemos claramente na Biologia contemporânea, pertencemos em nossos ancestrais à mesma população. Noutras palavras, pelo acima exposto, somos primos extremamente distantes.

Já ouvi e li até a frase “mas toda espécie tem de se originar de um casal!”.
Como vimos acima, poucas coisas podem ser mais errôneas, biologicamente falando. Somos todos hoje, humanos do mundo, em nossas diversas etnias e miríades de variações de angulações de ossos do rosto, cores e formados dos olhos, cabelos e tons de pele, descendentes de uma população limitada a mil a dez mil casais, e no subcontinente indiano, talvez no máximo apenas quinhentos indivíduos. Quem causou tal estrangulamento, gargalo populacional, foi a chamada catástrofe de Toba, um supervulcão no Oceano Índico, em torno de 75 mil anos atrás. Tínhamos antes maior variedade genética. Somos por um extermínio natural primos muito mais próximos que a maior parte das pessoas imagina.
Devido à catástrofe de Toba, entre os africanos “negróides” (o termo é na verdade obsoleto, mas será didático), temos a maior diversidade genética. Entre os asiáticos (“mongóis”), meus amigos de olhos puxados e muitas vezes até maçãs do rosto salientes de heranças muito remotas, temos uma ancestralidade mais estreita, e entre os caucasianos que originam-se desde o que chamamos hoje “povos árabes”, algumas das mais recentes mutações dos humanos, como a tolerância aos laticínios na vida adulta, a pele branca típica para absorver mais ultravioleta nas latitudes mais altas, os cabelos ruivos (uma das mais recentes), os olhos de cor verde. Há variações, continuam surgindo novas, e porque estas variações não significam “mais evoluído” trataremos a seguir.
Uma observação: os números em tempo apresentados acima podem ser modificados por recentes descobertas da Paleontologia, mas o raciocínio se manteria da mesma maneira, apenas produzindo uma “árvore” com uma conformação um tanto diferente, mas ainda sim, reconhecível com as mesmas bifurcações.

A segunda parte contém uma afirmação perigosa por parte do radialista, para dizer o mínimo. Novamente, aproximadamente:

“Assim, deus criou primeiros casais brancos, amarelos e negros...”

Antes de apresentar a monstruosidade até moral que são afirmações do tipo acima, percebamos que as afirmações não são sequer coerentes com um criacionismo de cunho cristão, mais genericamente, das religiões abraâmicas, pois estas defendem, mesmo que desesperadamente agarradas a um mito de pastores de ovelhas completamente analfabetos que sequer conheciam o ferro, um único casal ancestral de toda a humanidade.

Voltemos à savana africana.
Naquela população em torno de 200 mil anos atrás, estavam todas as variações genéticas do humano daquele tempo. Dispondo de uma máquina no tempo, como seguidamente uso didaticamente, trocando-me aos primeiros dias de agosto de 1965 por um recém-nascido daquela população, eu, naquela digamos tribo, poderia ter o triste destino de ser morto por ser considerado uma aberração, uma maldição de cor pálida, ainda que rechonchuda, ou exatamente por ser pálido, “branquinho”, considerado uma dádiva de algum deus dos elefantes ou coisa parecida. Com o tempo, minha palidez seria diluída, e até exterminada na genética da população por cânceres de pele que seriam permitidos com uma certa queda da melanina na descendência. Meus descendentes não seriam muito aptos ao meio, ainda que talvez obtivessem umas posições agradáveis na tribo pelos anos (ou seriam sempre mortos por alguma nova superstição).

Por outro lado, meu pai e minha mãe entrariam com um grave processo contra o hospital pela troca misteriosa, talvez o meu amiguinho vítima de viajantes no tempo um tanto irresponsáveis seria abandonado pelo casal em crise, sabe-se lá que tragédia, mas perfeitamente, bem alimentado e instruído, poderia ser, sem empecilho algum, mais capaz intelectualmente do que eu, talvez com algum talento extraordinário, como música ou capacidade artística como a escultura, um grande orador, etc. Resumindo, alguém mais interessante aos olhos dos atuais humanos do que eu.

Motivo: não diferimos em coisa alguma no básico que a genética nos permite dos humanos daquele tempo. Só estamos separados por variações do que chamamos até erroneamente “raça” e pelo evidente tempo. Por outro ângulo, não somos – ele e meu amiguinho retirado de sua certamente amorosa tribo - uns primatas desajeitados que sequer uma lança, aos 15 anos de idade, conseguiríamos fazer. Somos fundamentalmente da mesma espécie, de uma população perfeitamente intercruzável, distantes por séculos, até dezenas de milênios, nada mais.

Nunca houve, pois, um primeiro casal sequer de que etnia se imagine. Evitemos velhos erros, que só ao preconceito estúpido conduziram, vide a noção absurda que a evolução tinha produzido os homens europeus brancos vitorianos como vitoriosos de um processo evolutivo.
Pelos?  Muito pelo contrário!

Avancemos adiante do trocadilho infame...

Tenho um conhecido, por um acaso de origem oriental, que insistentemente cai no erro de dizer que é “mais evoluído” por ter menos pelos corporais.

Igualmente um erro simplório, e talvez aqui mais simplório.

Não é “mais ou menos evolução” que faz um urso polar ter a dupla camada de pelos que o torna apto aos climas árticos. É exatamente ter evoluído possuindo esta aptidão que foi correlata com ser peludo.

Mas claro que não somos ursos.

Porém, bonobos, os chimpanzés pigmeus são claramente menos peludos que seus primos mais próximos. Jamais podemos dizer, com minúcias de “sentido” de um processo, qual foi a direção em termos de mais isso ou mais aquilo que leva a ter, por exemplo, escamas ou pelos, chifres ou esporões. A seleção natural e a deriva genética de mínimas características, como os poucos pelos dos humanos não são direcionados tão rigidamente.

A Biologia, como sempre, é uma Ciência única.

Sou obviamente de uma etnia mais nova que a de nativos do sul da África – em caso de distração, releia a primeira parte deste texto – não sou, por isso mesmo, mais evoluído que estes meus afastados primos afros, e pela falta de direção estrita em determinadas características, sou bem mais peludo corporalmente que qualquer africano.

Poderia aqui alongar hipóteses de seleção sexual desde a barba até pelos no peito e nas costas entre ancestrais europeus e dos povos do norte da Índia, mas não seria sequer honesto com meus amigos que estudam profundamente o histórico da evolução humana. A questão acima de qualquer discussão neste campo é: não existe, definitivamente, qualquer característica genética humana, associada a qualquer de suas etnias, que coloque qualquer destas etnias como “mais evoluídas”. Podemos dizer que são mais recentes, e tal é comprovável até por registros lingüísticos e históricos, como se percebe nos povos da África e nas migrações da Ásia e Europa, respectivamente, mas isso não nos separa, em qualquer caso evidente, a não ser recentes suposições de especiações humanas em termos de cromossomos ocorrendo na Ásia, que exista alguma hierarquia biológica entre nós, até porque, em termos de espécie humana, isso não existiria, e mesmo uma especiação não implicaria em “mais evoluído”, conceito por si só uma contradição em termos.

Seria algo tão insano como dizer que descendentes de peixes de cavernas sem olhos, evoluídos de peixes de lagos da América Central, seriam nesses olhos a menos, faltantes, “menos evoluídos” que seus primos/ancestrais diretos.

Se a ausência de algo não o convenceu desta ausência de sentido, podemos dizer que o acréscimo de algo também não o faria, pois deixando de existir as cavernas, e havendo peixes que voltassem a ter estruturas de visão – seja a partir de que modificação de qual estrutura – estes não seriam ``mais evoluídos`` que os cegos, pois sempre as formas de vida seriam ``mais aptas`` e mesmo a questão de ``mais complexo`` seria discutível, pois até mesmo, no nosso pitoresco e no fundo apenas didático caso, alguém com pelos e evidentemente mais complexo que alguém sem estes. Ops! Q.E.D..
Não, não demonstrou-se acima coisa alguma, até porque não haveria sentido no processo evolutivo a se demonstrar.
Não são cabelos loiros, olhos azuis, dobras nas pálpebras, mais ou menos melanina que nos torna superiores como humanos entre os demais humanos. Apenas mostra diferenças em etnias que nos tornaram mais aptos a determinados ambientes (ou mais atrativos aos de nossa mesma etnia), como mais capacidade de produzir vitamina D com a radiação solar, narinas e sinus mais estreitos e longos para climas mais frios, mais resistência a radiação ultravioleta das savanas, etc. Existem pois aptidões fruto de seleção – até sexual – e adaptações a ambientes, coisa alguma além disso.


Afirmar que qualquer característica humana é prova por si de este ser “mais evoluído” é algo tão sem nexo quanto afirmar que um cão pelado mexicano, fruto de séculos de nossas seleções entre  os cães, o torna superior a um lobo das planícies asiáticas, de onde mais confiavelmente todos os cães evoluíram.

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