sexta-feira, 12 de março de 2010

Inteligência II

Valores e o humano

Definamos dois conceitos simplificados em Ética, que é a "ciência filosófica" da moral (reparemos as aspas).

Sócrates (em pé, de verde oliva), por Rafael, detalhe de 'A Escola de Atenas'. O julgamento deste filósofo é um exemplo, ou talvez uma metáfora, de que a lei e seu cumprimento podem ser completamente imorais.


Existem conceitos de moral que são claramente universais. Um exemplo, pelo menos a princípio, é o "não matar". Pensando sobre tais temas, Kant chegou a conclusão que conceitos morais deste tipo são universais porque o seguir o seu contrário, ou seja, tornar banal matar levaria inexoravelmente a humanidade à extinção. Igualmente, o estuprar impediria a liberdade sexual de qualquer indivíduo. Assim, os classificou como 'universais' por este raciocínio relativamente simples.



A cena de estupro de Irreversível, um filme que mostra que uma jornada de vingança pode resultar em completa imoralidade.

Retornando ao aparentemente óbvio matar, percebamos que matar em legítima defesa (inclusive de terceiros), ou o matar nas "guerras morais" (como por exemplo, o enfrentar do nazifacismo na 2a Guerra Mundial) torna-se, paradoxalmente ao raciocínio de Kant, um matar moral. Logo, não matar não é propriamente uma moralidade absoluta, sendo relativa sob diversas variáveis, como o contexto histórico.

Uma análise mais profunda, levará a chegar-se que os universais de Kant sempre são relativizáveis, embora se mostrem uma tendência clara, lógica, para a própria sobrevivência da sociedade, da civilização e por fim, da humanidade. Então, chamemos tais valores morais, até para simplificar nosso texto, de universais, porém passíveis de críticas (nosso objetivo aqui não é de forma alguma uma discussão sobre Ética num nível mais profundo que o necessário).

Já valores morais que sejam mais culturais, como por exemplo o caso que considero perfeito da monogamia/poligamia, seja a poliginia, seja a poliandria. Estes tipos de valores morais (que podem incluir até regras do que chamamos de etiqueta) são determinados em processos históricos e culturais pelo que Nietzsche coloca como os valores determinados pela classe dominante (quando não impostos por esta). Estes, são sempre relativos, já a uma análise superficial. Abordando este argumento por outra via, nada existe de imoral, a não ser, por exemplo para o Catolicismo, de imoral em si na poliginia dos Mórmons, dos Muçulmanos ou da poliandria do Tibete.


Mormon Polygamy - Frequently Asked Questions


Obviamente, por motivos que qualquer um percebe como determinantemente orientados pela nossa natureza de mamíferos, a poliginia é mais frequente na história e na geografia que a poliandria. Da mesma maneira, as relações homossexuais (que seriam outra forma de valoração moral relativa na história) sempre foram muito mais frequentes como aceitáveis e até cultuáveis entre homens e não tanto entre mulheres, até pelo fator simbólico fálico do que, como mamíferos, encaramos como penetração, ou a relacionada simbologia do pênis, desde obeliscos até a gíria "espada" dos humoristas do Caceta & Planeta (lembrando, vaginum em latim relaciona-se com bainha, o objeto que guarda a espada ou faca). Não temos escape, o cultural reflete o biológico e o linguístico é contruído pelo cultural, logo...

Retornando aos valores morais, um homem moral, numa sociedade poligâmica, tendo um harém de 100 esposas, continuará moral se lhes prover cuidados e sustento, embora, garanto, talvez se satisfaça muito mais com elas do que elas com ele (o que pode até, por ironia, ser considerado uma imoralidade).

The Harem por John Frederick Lewis

Porém, um homem ocidental, monogâmico, que administre temerariamente suas finanças, e abandone a própria sorte sua única esposa grávida - não empregada/desprovida de renda - será, obviamente, imoral (forçando um caso, admito, mas há anos assumo que, na busca de exemplos, chego na fronteira de um desonesto intelectual completo quando quero sustentar meus pontos).

Logo, o possuir ou não possuir uma esposa/esposo não é determinante em si, nem de moralidade, nem de inteligência, pois o que seja inteligência, mostramos anteriormente, não será de forma alguma associado diretamente à moralidade, seja sob que análise, seja pelos 'relativos de Nietzsche' ou 'universais de Kant'.

Portanto, um estudo como o da London School of Economics, especialmente nas frases abaixo:

"Para ele, a inteligência ajuda o homem a escapar das consequências da infidelidade."

"Para o homem moderno, o mais importante é a estabilidade da relação e a família."


Leva-me a concluir que:

1) O que é considerado fidelidade conjugal seja uma fidelidade a um padrão de comportamento na formação de família (ou conjugal, se preferirem) definido como monogâmico, e que não possa ser, por acordo entre as partes unicamente interessadas, embora até expesso em lei*, definido como desejável.

*Legislações são muitas vezes, uma das formas de imposição da moral relativa da classe dominante.

2) A inteligência específica é apenas um bom senso financeiro, não propriamente o que caminhe para a genialidade. Explico noutras palavras: qualquer pessoa minimamente dotada deduz que não pode gastar mais do que ganha (o que já entraria em contradição com gênios como Mozart e Wagner, que sendo compositores, tenho certeza que eram hábeis em aritmética, mas um desastre em suas finanças). Logo ser minimamente inteligente já conduz a um não ter mais esposas/amantes do que se possa sustentar (ou que gerem despesas maiores que se possa cobrir), ou não perder valores na separação (o que por si só já denota um padrão moral relativo, de que homens tenham de sustentar mulheres, suas conjuges, ou, também, que a partilha seja sempre prejudicial ao homem, ao invés de apenas justa).

3) Também podemos analisar, que sob um casamento na verdade em ruínas, um homem que trai inicia uma relação fiel e mais proveitosa, que infelizmente, por um contexto até de tempo, tem de passar por um período que aos olhos de muitos, possa parecer uma infidelidade.

4) Mas pode ser, sob este claro bom senso até financeiro, um apego a fidelidade apenas por um motivo interesseiro, o que poderíamos chamar de avareza, e não, propriamente, uma moralidade.

Acredito que poderia colocar com mais um pouco de esforço um bom número de variantes que colocariam as conclusões rígidas deste estudo como duvidosas.

Assim, mais uma vez, coloco que analisar questões humanas extremamente complexas por abordagens reducionistas é mais que arriscado.

Lembrando sempre Mayr, na máxima que é título de livro, Biologia, ciência única, e parafraseando Dobzhansky, talvez nada se afirme em moral humana que não seja iluminável pela evolução.

Uma das razões de nosso sucesso evolutivo foi a coletivização de nossas fêmeas, relacionada com a associação entre nossos machos, em grupos coordenados (tal comportamento é nítido nos chimpanzés) que nos levou aos grupos de caça.

Se fôssemos comos os gorilas, disputando aos sopapos e mordidas um grupo de fêmeas, ainda estaríamos assim. Porém, e aqui Freud acertou na mosca, se fôssemos absolutamente promíscuos e desenfreadamente sexuais em nossas relações sociais, não seríamos diferentes dos bonobos. Logo, somos um sucesso evolutivo pois paramos de disputar parceiros sexuais e produzimos um processo civilizatório pois criamos padrões ditos morais de comportamento. Somos um primata que acertou um meio termo em seu comportamento sexual/social. De limitarmos os estupros ao mínimo, reduzirmos o matar a ser moral apenas quando necessário exatamente em função de impedí-lo, construímos aquilo que consideramos como os ápices de nossa civilização.

Se monogamia, poligamia, fidelidade ou infidelidade foram colocados em facetas pingadas nesta lapidação do humano, é um processo acessório ao fruto do desenvolvimento da inteligência, e não uma consequência direta, inseparável e tendenciosa desta.
Alguns comentários adicionais
Se existe aristotelismo classificatório ao qual me dou o luxo, é de separar o que seja o que defino como psicopata do que defino como um sociopata. Um psicopata, a meu ver, é normalmente limitado intelectualmente, comete atos brutais cheios de ritualística que beiram o insano, pois não obtém coisa alguma com aquilo a não ser a satisfação de uma desejo pessoal sabe-se lá com que motivação. O psicopata clássico seria Jack, O Estripador. Outro, mais próximo de nós brasileiros, seria o Maníaco do Parque. Tanto são patológicos em suas "almas", que o que os motiva é pessoal e intranferível.
Existem psicopatas que dividem-se em uma personalidade até moral e carismática, filantropa e humanitária, o mais perfeito dos senhores de nossas sociedades, e no seu outro lado, podem ser monstros com os piores e mais repulsivos vícios (e não necessariamente são limitados intelectualmente, muito pelo contrário). Um exemplo que conheço deste quadro é o de John Wayne Gacy (um caso tão grave que gerou uma nova maneira de se investigar este tipo de delito nos EUA).

Uma observação: as chamadas "lesões cerebrais menores" são associadas ao comportamento psicopático, o que explicaria uma não ligação direta com limitação intelectual.

Algumas das "atividades artísticas" de Jack, O Estripador. Para mais fotos, e para quem tiver estômago, recomendo a fonte: Crime Scene Photos.
Já os sociopatas (na minha definição, fique bem claro) possuem objetivos que poderiam ser nobres como grandes postos, riqueza, a felicidade de um povo. Claro, que aqui, usarei um ad hitlerum: Hitler, o sociopata clássico. Não possuem ritualística insana. Não realizam ato algum que não faça parte de seu objetivo. Podem, inclusive, ser gênios em seus campos de talentos, e até pessoas relativamente afáveis, dados seus focos, como com crianças e cães.


Um distinto senhor germânico, em seu dia a dia.


Para entender-se o quão diferentes são, e a óbvia diferença de escala de seus atos, observem estas fotos, que mostram suas "obras" ou comportamentos. O perigo é que nem a família de Jack, O Estripador o seguiria como um líder. Já no caso da outra classificação, não podemos dizer historicamente o mesmo.




Uma das belíssimas imagens de Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade) de Leni Riefenstahl. O problema nunca foi a qualidade artística da propaganda, mas os objetivos ocultos de toda a inteligência que estava por trás dela.
Aviso: o meio empresarial, assim como o chamado ambiente coorporativo, está cheio de sociopatas "leves". O que trato como 'personalidades malévolas'. São exemplos estelionatários dos mais diversos tipos, os indivíduos sedutores por excelência (aquele típico vendedor de carro usado ruim e terreno em duna de areia na praia, como certa vez foi dito de determinado ex-presidente brasileiro), o administrador temerário mas que salva o seu butim na última hora, o colega de trabalho que "lhe dá - e a todos - bolas nas costas", etc. Notemos que nenhum destes casos seriam indivíduos limitados intelectualmente. Recomendo, aqui, o livro MENTES PERIGOSAS: O PSICOPATA MORA AO LADO, de Ana Beatriz Barbosa Silva .

Observemos, finalmente, que exatamente uma certa brutalidade, uma certa desinibição moral, uma certa "maldade", até poderíamos dizer, é que nos levou de sermos vítimas nas savanas africanas aos matadores dos leões. A vítima por milhões de anos passou a ser o algoz. Confesso que não vejo muita utilidade no mito de Órion, o herói caçador mas estuprador, mas vejo poderosa simbologia no mito de Osíris e Hórus, em que o filho vingativo mata o assassino de seu pai bondoso (pois os bondosos, por sua natureza, normalmente são as vítimas permanentes), que fundou a agricultura, e ergue uma grande nação. Por fim, não há mal por si, há o que relativamente classificamos como o mal, com foco em construirmos a civilização.


Nossos atos são nossos anjos bons e maus, sombras fatais que caminham ao nosso lado. - Beaumont e Fletcher

Francis Beaumont (1584-1616) e John Fletcher (1579-1625), dramaturgos ingleses que escreveram quase sempre em colaboração. O sucesso de suas peças, em seu tempo, superou de muito o das peças de Shakespeare.

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