Introdução
Ao longo das últimas décadas, os acervos museológicos têm incorporado uma crescente variedade de objetos fabricados em plástico, testemunhas materiais da evolução do design, da tecnologia e da cultura contemporânea. No entanto, a durabilidade aparentemente inerente a esses materiais sintéticos no cotidiano contrasta fortemente com a instabilidade que se manifesta em ambientes museais. A passagem do tempo e a interação com fatores ambientais desencadeiam processos de degradação química e física complexos, transformando gradualmente esses itens, outrora modernos e inovadores, em desafios significativos para a conservação e a preservação do patrimônio cultural.
Cenário geral
A durabilidade que geralmente associamos aos plásticos no nosso dia a dia se revela uma ilusão quando se trata de objetos de plástico em acervos museológicos. Esses materiais apresentam desafios únicos de conservação e preservação.
Principais Problemas de Degradação de Plásticos em Museus:
Instabilidade Intrínseca: Diferentemente de materiais tradicionais como pedra ou metal, os plásticos são materiais orgânicos e, portanto, inerentemente instáveis a longo prazo. Eles são suscetíveis à degradação por diversos fatores.
Natureza Heterogênea: A vasta gama de tipos de plásticos (celulose nitrato, celulose acetato, PVC, poliuretano, etc.), cada um com sua própria composição química e aditivos (plastificantes, corantes, estabilizantes), significa que cada tipo degrada de maneira diferente e a taxas variadas. A identificação precisa do tipo de plástico é crucial, mas muitas vezes difícil.
Degradação Química:
Hidrólise: Alguns plásticos, como o celulose acetato, reagem com a umidade do ar, liberando ácido acético, que pode corroer o próprio objeto e danificar outros materiais próximos (metais, papel, etc.).
Oxidação: A exposição ao oxigênio pode levar à quebra das cadeias poliméricas, resultando em fragilização e alteração da cor.
Fotodegradação: A radiação luminosa, especialmente a ultravioleta, fornece energia para quebrar as ligações químicas nos polímeros, causando descoloração, rachaduras, perda de resistência mecânica e outros danos.
Perda de Plastificantes: Plastificantes, que conferem flexibilidade a alguns plásticos como o PVC, podem migrar para a superfície do objeto, evaporar ou sofrer lixiviação, tornando o plástico quebradiço e pegajoso. Essa exsudação pode atrair poeira e poluentes, acelerando ainda mais a degradação.
Desgaseificação (Outgassing): A degradação de alguns plásticos libera gases corrosivos e nocivos (como óxidos de nitrogênio do celulose nitrato ou cloreto de hidrogênio do PVC) que podem danificar outros objetos na coleção e representar riscos à saúde de quem os manuseia.
Autocatálise: Os produtos da degradação de um plástico podem catalisar sua própria deterioração, acelerando o processo.
Rápida Degradação: Após um período inicial de relativa estabilidade (que pode variar de poucos a várias décadas), a degradação dos plásticos pode acelerar rapidamente e se tornar irreversível, levando à perda completa do objeto.
Dificuldade de Conservação: Atualmente, não existem métodos eficazes para deter completamente a degradação dos plásticos. A conservação se concentra principalmente na prevenção e na tentativa de retardar o processo.
Falta de Recursos e Especialização: Muitos museus não possuem os recursos ou a equipe especializada para identificar, monitorar e armazenar adequadamente seus acervos de plástico. Isso leva à deterioração não detectada e à perda de objetos valiosos.
Problemas de Exibição: A exposição à luz, mesmo em níveis considerados seguros para outros materiais, pode acelerar a fotodegradação dos plásticos. O controle da temperatura e da umidade também é crucial, mas pode ser difícil de manter em ambientes de exibição.
Consequências para Museus
A degradação de plásticos representa uma ameaça significativa ao patrimônio cultural mantido em museus:
Perda de informação histórica e cultural: Objetos que documentam a história do design, da tecnologia e da cultura moderna podem se desintegrar.
Custos crescentes de conservação: A necessidade de monitoramento constante, armazenamento especializado e tentativas de estabilização geram custos significativos.
Riscos para a saúde: A liberação de gases tóxicos e a manipulação de plásticos degradados podem representar riscos para a saúde dos conservadores e do pessoal do museu.
Dilemas éticos: Os conservadores enfrentam decisões difíceis sobre como intervir em objetos degradados, sabendo que qualquer tratamento pode ser paliativo ou até mesmo prejudicial a longo prazo. A questão de aceitar a inevitabilidade da decadência também é um ponto de debate.
Em resumo, a degradação de plásticos é um problema complexo e crescente para os museus. A identificação, o armazenamento adequado em ambientes controlados (temperatura baixa e estável, umidade relativa controlada, ausência de luz UV e poluentes), a segregação de plásticos instáveis de outros materiais e o monitoramento regular são as principais estratégias para tentar preservar esses objetos para o futuro. A pesquisa contínua é fundamental para desenvolver novas técnicas de conservação para esses materiais desafiadores.
Um exemplo de patrimônio degradando: No Museu Nacional do Ar e Espaço Smithsonian, as viseiras de policarbonato dos trajes espaciais Apollo estão se degradando à medida que liberam aditivos. - www.scientificamerican.com
Substituição por Materiais Perenes e o Paradoxo do Navio de Teseu
A crescente conscientização sobre a degradação inevitável de objetos plásticos em museus tem levado à consideração de substituições por materiais mais estáveis e perenes, como o vidro, em certas aplicações. Por exemplo, vitrines e embalagens de acrílico ou poliestireno, que podem amarelar, rachar ou liberar gases nocivos, poderiam ser substituídas por vidro de qualidade museológica, conhecido por sua estabilidade química e física a longo prazo.
No entanto, essa aparente solução direta nos leva a uma reflexão que ecoa o antigo paradoxo filosófico do Navio de Teseu. A história narra que o navio do herói Teseu foi cuidadosamente preservado ao longo dos anos, com cada tábua deteriorada sendo substituída por uma nova. A questão filosófica que surge é: depois que todas as tábuas originais foram substituídas, o navio resultante ainda é o mesmo navio de Teseu? Ou teria ele se tornado um novo objeto, apesar de manter a forma e a função do original?
Essa mesma linha de questionamento pode ser aplicada à substituição de componentes plásticos degradados em um objeto museológico por materiais mais perenes. Se substituirmos uma parte acrílica amarelada de uma escultura por um componente idêntico feito de vidro, o objeto ainda seria considerado o original? Não teria ele se trornado apenas uma réplica do original, inclusive diverso em materiais? Em que ponto a substituição de materiais compromete a autenticidade e o valor histórico do artefato?
Paralelos e Implicações Museológicas
A Natureza da Autenticidade: O paradoxo do Navio de Teseu nos força a confrontar a própria definição de autenticidade em um objeto histórico ou artístico. A autenticidade reside nos materiais originais, na forma concebida pelo criador, na sua história de uso e posse? Ou uma combinação desses fatores? A substituição de um componente plástico degradado por um material diferente altera a materialidade original, levantando questões sobre a integridade do objeto.
A Intenção Original: Se o artista ou o fabricante original escolheu um material plástico específico por suas propriedades estéticas, funcionais ou mesmo ideológicas (como na cultura do plástico do século XX), a substituição por um material diferente, mesmo que mais durável, pode alterar a intenção original e, portanto, o significado do objeto. Uma vitrine de acrílico original, mesmo que degradando, pode ser parte da história da exibição daquele objeto em um determinado período.
A Evolução do Objeto: A própria degradação do plástico, embora problemática para a preservação, pode ser vista como parte da "vida" do objeto e carregar informações sobre os materiais utilizados em sua época e as condições a que foi submetido. Substituir completamente esses componentes poderia apagar parte dessa história material.
A Praticidade da Conservação: Em muitos casos, a substituição de um componente plástico que está se desintegrando ativamente pode ser a única maneira de garantir a sobrevivência do restante do objeto. A liberação de gases corrosivos por um plástico degradado, por exemplo, pode danificar outros materiais preciosos. Nesse cenário, a ética da conservação pode priorizar a preservação do todo, mesmo que isso implique na substituição de partes.
A Transparência da Intervenção: Se a substituição for considerada necessária, a prática museológica moderna enfatiza a importância da transparência. Qualquer substituição deve ser claramente documentada, e o novo material deve ser distinguível do original, evitando falsificações ou ambiguidades futuras.
Conclusão
A consideração de substituir plásticos degradáveis por materiais mais perenes em museus oferece uma solução potencial para um problema prático de conservação. No entanto, essa abordagem nos confronta com dilemas filosóficos profundos sobre a natureza da autenticidade e a integridade dos objetos históricos e artísticos, espelhando o paradoxo do Navio de Teseu. A decisão de substituir ou não um componente degradado exige uma cuidadosa ponderação dos benefícios da preservação a longo prazo em relação à perda da materialidade original e da intenção criativa, sempre guiada por princípios éticos de conservação e pela busca da maior integridade possível para o patrimônio cultural.
Extra
COMPLEX: Gerenciando a Degradação de Plásticos em Acervos Museológicos
O projeto interdisciplinar COMPLEX dedica-se a entender e gerenciar a degradação de plásticos em coleções de museus, adotando uma abordagem de dinâmica de sistemas para os mecanismos de deterioração de polímeros. Colaborando com especialistas da UCL, Tate, Museu de Londres e parceiros industriais, o COMPLEX visa desenvolver modelos que forneçam insights sobre os complexos processos físico-químicos da degradação plástica e sua dependência de fatores ambientais como luz, temperatura e umidade, incluindo suas interações sinérgicas. O objetivo é identificar os parâmetros-chave que afetam a mudança dos objetos ao longo do tempo, auxiliando museus a desenvolver estratégias baseadas em evidências e técnicas inovadoras de preservação para exibição e armazenamento, visando a longo prazo influenciar políticas de conservação e manter a integridade de valiosos objetos plásticos.
Referências e leituras recomendadas
Sam Kean, When plastics are precious - To prevent museum artifacts from falling apart, conservators experiment with preservation methods. 2 Jul 2021. - www.science.org
Plastic care and conservation - www.museumsassociation.org
Sarah Everts, Deteriorating Plastic Threatens to Ruin Museum Treasures. April 1, 2016 - www.scientificamerican.com
COMPLEX: The Degradation of Complex Modern Polymeric Objects in Heritage Collections - www.tate.org.uk
Curran, K., Underhill, M., Grau-Bov, J., Fearn, T., Gibson, L. T., & Strlic, M. (2018). Classifying Degraded Modern Polymeric Museum Artefacts by Their Smell. Angewandte Chemie International Edition, 57(24), 7336–7340. PDF: onlinelibrary.wiley.com
Conservation and restoration of plastic objects - en.wikipedia.org
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