quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Jornada sem fronteiras

Pelo menos até as primeiras impressões das sessões para a imprensa, percebia que as expectativas para o último filme do universo de Jornada nas Estrelas eram de pessimistas às piores possíveis. Existiam dois motivos principais: o diretor tinha trabalhos anteriores em filmes de ação, digamos, não muito elegantes, e completamente distantes do mundo da ficção científica, e um dos roteiristas, Simon Pegg, é predominantemente um comediante e humorista, que embora tenha feito participação na série com boa aprovação no papel de Montgomery 'Scotty' Scott, e tenha escrito comédia em ficção científica (atividade que concordemos que não é das mais fáceis) não era encarado como podendo ser uma fonte de ideias para as – já – “tradições” de Star Trek.




Nessas tradições, analisemos, estão coisas oriundas da série de televisão original ser trabalho de homens que estavam entre o perfil de “veteranos” (“aqueles que salvaram o mundo”) e baby boomers (“aqueles que, então, reconstruiriam o mundo”). Talvez meio sem querer, Star Trek transcendeu o simples “o que a humanidade poderá ter” e “poderá enfrentar” para ser praticamente uma explanação de “como ela deveria ser”: igualitária racialmente, integrada sem os conflitos do que chamamos de nações, desprovida claramente de uma ambição por consumo – o que é muito distante do que seria na época uma dicotomia simplista entre comunismo e capitalismo – e motivada pela busca de conhecimento, numa antecipação do conceito de Economia do Conhecimento, um dos campos de meu interesse e inclusive, recente trabalho.

Naquele tempo, pensar em uma humanidade unida não era propriamente um sonho, era uma necessidade de simples sobrevivência a um confronto apocalíptico entre blocos ideológicos.
Talvez nesse pilar utópico, repleto de esperança em uma paz inclusive entre espécies num não muito distante futuro (já se foi um boa fração do tempo previsto) encontre sua maior força, e seja o motivo da paixão que produz entre milhões de fãs.
Discuto com quem  afirma que a criação de Gene Roddenberry seja um “western espacial”. Percebo que a maior inspiração de Star Trek sejam as viagens da Idade Moderna, de exploração mista de descobrimento e pesquisa em “Filosofia Natural” (o que seja propriamente Ciência nasce um tanto mais recentemente), algo mais próximo da Viagem do Beagle, com o grande e humilde Charles Darwin a bordo, coletando espécimes, mesmo que necessitando de guarda armada e canhões (pequenos, pois o barco também o era), até porque podia-se encontrar assustada população selvagem com suas flechas, um navio de alguma irritadiça nação opositora ou mesmo os piratas de costume. Não eram jornadas fáceis, e os problemas não se resumiam, como vemos, a algum predador robusto ou animal peçonhento, sem falar nas distâncias mortais para um navegador imprudente. Se querem saber onde percebo maior analogia com Star Trek nesse mundo, procurem a literatura do tipo que deu origem ao filme “Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo”. Poderão ali ver inclusive até os momentos musicais de Spock, ou o encontro com formas de vida exóticas, como baseadas em silício.

Mas claro que não é fácil agradar a geração X, motivada pelo ganho e auto-motivada numa quase patológica independência que bem percebo em mim mesmo, depois aos não muito fiéis a certas instituições e paradigmas da geração Y, e ainda mais a em primeiros anos de vida geração Z (que prefiro chamar de ‘gamers”, pois vai faltar em breve letras), com sua atenção microscópica em tempo e exigências de ação vertiginosa.

Mas a geração X, junto com os baby boomers residuais no ramo, produziu os diversos filmes e séries com recursos relativamente escassos e prolíficas ideias que permearam estas últimas décadas, tanto na televisão quanto no cinema, sem falar, claro, da entrada mais nobre no mundo da literatura, e no com enorme pressão de vasta concorrência de gêneros dos quadrinhos.
Concentremo-nos no cinema. Percebamos que na transição dos produtores dos 1980 para os 1990, após a planície de orçamentos com a tripulação da série clássica, ocorreu um crescendo das produções, e não só propulsionado pelos efeitos especiais. Resumindo: tem-se colocado no mundo do cinema mais dinheiro no produto. Percebe-se isso claramente no ápice que foi Nemesis, cujo nome já carrega uma ironia e um desafio ao produto.
Chegamos, me atrevo, à nova releitura do universo de Star Trek, que inicia com novas linhas do tempo, paradoxos e dilemas existenciais devidos à viagens no tempo, efeitos mesmo que limitados em volume frente à outras produções tem sua qualidade, e uma dinâmica que pode atender às plateias contemporâneas.

Obs.: Após Avatar, convenhamos, e esqueçamos a qualidade dos argumentos ou a pilha de clichês, qualquer coisa tem fortes problemas de produzir realmente impacto visual.

Mesmo com o perdão a “pilares com rebites” e interior de nave interestelar que muito lembra uma fábrica de bebidas (e sei que é em torno disso que muito do cenário foi feito), o uso inteligente de instalações de pesquisa de alta tecnologia, percebe-se claramente que já na parte final de Além da Escuridão, Star Trek no cinema ganha uma escala e um realismo inédito (esse, impossível aos tempos do colosso de produção que foi The Motion Picture).

Ou seja: A não ser por algum desastre de bilheteria quase impossível aos dias de hoje e pela natureza do próprio produto, Star Trek estabeleceu-se entre um dos grandes espetáculos cinematográficos previstos para os anos que estão por vir. Falta-lhe, talvez, um projeto de conjunto que podemos resumir com a palavra “saga”. Não necessita-se lembrar aquele universo de fantasia ambientado em um cenário de ficção científica cujo nome aqui não deve ser dito, o “dos sabres de luz”.  Podemos lembrar Fundação, podemos lembrar Duna, podemos lembrar Rama e tudo derivado de ‘2001’, e lembremos que ‘2001’ é um derivado, um “remix”, e nestes, por analogias, escalas de espetáculo não faltam.

Voltemos ao recente filme.

As palavras que li e ouvi da imprensa após tais sessões exclusivas foram: “renovação”, “novos rumos”, “atrair novos fãs”, etc. Sendo eu o “pipoqueiro” que sou, e tendo bastante atração desde muito pela série, e absolutamente paixão dentro do terreno geral da ficção científica por alguns episódios das séries, inclui-se aqui a série em animação, por alguns filmes e diversos de seus momentos, lógico que fui assistí-lo.
O mundo de Star Trek chegou novamente a um nível equivalente de produção do primeiro filme para o cinema, ironizado com o subtítulo impagável de “The Motionless Picture”, mas que é espetacular sob todos os aspectos para seu tempo, então o estado da arte em efeitos visuais.

A computação gráfica, propulsionada como sempre pela lei de Moore e pelo crescente domínio dos artistas sobre os softwares, dessa vez permite inclusive a colocação de personagens, ou melhor, espécies, sem o antropomorfismo limitado à maquiagem, lentes de contato e peças prostéticas, destacadamente na cabeça. Aqui já tenho um tema de divulgação científica, e adiante o tratarei.

Resumindo: o filme enche a tela em praticamente todos os minutos.

Recomendo: não pisque quando o filme iniciar, pois nas suas primeiras cenas, a veia típica de Simon Pegg se manifestará, e em segundos, fará em pó todo o histórico de antropomorfização dos alienígenas da história dos produtos Star Trek, e com algo digno de Douglas Adams, com um tema realmente de ficção científica.

Outros mundos, outras geometrias corporais, outros conceitos, outros hábitos, outros costumes, outros significados, em variedade sem fim, pois todo o processo estocástico que forem as evoluções locais (planetárias ou outras) serão imensamente diversas da nossa em resultados.

Não pisque igualmente na alucinação gravitacional que é a estação espacial Yorktown, que faz a estação centrífuga de Elysium, sinceramente, parecer um quiosque de praia (e sem o erro de Física na atmosfera que ali apontei).


Como se vê já no trailer, a similaridade com os combates entre naves aos moldes de canhões de caravelas típicos da série (levados no aclamado A Ira de Khan ao ponto de lembrar combates de submarinos) aqui encontra o conceito de combate que podemos resumir com a palavra enxame (vide ‘Ender’s Game’ ou a nuvem que tudo corrói da segunda versão de ‘O Dia em que a Terra Parou’). Star Trek mais uma vez encontra novos conceitos tecnológicos, antecipações do que está por vir no campo militar.


A geometria interna da nave e a mudança no vetor peso dos personagens torna-se praticamente um elemento da ação, e tal não é fácil ser realizado, e coloca o espectador praticamente dentro da ação, dada a elegância do 3D.

O tema fundamental não é de ficção científica?

Concordo. Mas meia dúzia das maiores obras de ficção científica de todos os tempos não possui um tema que no fundo seja realmente de ficção científica. Seguidamente, são questões morais, políticas, sociais, sexuais, religiosas, ciclos repetitivos da história, metáforas diversas.

Aliás, descobrirão os mais rápidos e experientes, o mesmo tema já foi base em outros filmes, alguns de terror em ficção científica, outros de profunda inspiração e mensagem. Passadas algumas semanas os citarei, e os ligarei a textos clássicos, pois o trabalho de retomar divulgação em exobiologia e viagens espaciais inspirado nesse filme está apenas começando.

A jornada que é o conhecimento científico e sua divulgação é jornada sem fronteiras, seja de temas, seja de inspirações, inclusive, da cultura pop.

Um dos méritos desse filme em seu roteiro, a meu ver, é entremear um drama de características clássicas na literatura com um humor leve, que a cada “peça” capta um tanto das conhecidas características de cada personagem, tão percebidos e perseguidos pelos fãs, e tal alternância é feita com um ritmo que o torna muito agradável, tendo a característica típica dos filmes divertidos, que é passarem-se os minutos às dezenas e deixar aquela sensação até angustiante de “ah! mas já acabou?”, sempre evitando a “saturação” de quem assista.

Acredite: até a moto e músicas do trailer fazem todo o sentido.

Assim, recomendo assistir o filme em tela grande e preferencialmente, em 3D, pois é “grande”, e essa palavra resume muito, como bem ensinou aquela outra saga “dos sabres”, que exatamente foi que jogou por necessidade de fazer-se dinheiro os navegadores e pesquisadores da televisão dos anos 1960 de volta ao espaço.

Que Star Trek, mais uma vez, tenha um vida longa, e próspera.