domingo, 7 de novembro de 2010

A Origem (XI)

...de muitos erros



O fio de Ariadne - O índice deste conjunto de postagens



Sono, o imprescindível




Acredito que todos nós sabemos que a suspensão prolongada de períodos de sono, as "viradas de noite", os porres, as noites de sono entrecortadas, as "baladas" extendidas levam ao tão sonhado "espírito independente da matéria" a mostrar-se uma enorme bagunça bioquímica, especialmente hormonal, e a pregada eficiência aristotélica da mente humana virar o carro enfiado no poste ou jogado pelo barranco abaixo no primeiro rio.

Nosso hardware cerebral, para manter o software mental em razoável operação, necessita de vez em quando, tanto em ciclos múltiplos (polifásico), como os bebês humanos e os cachorros (na verdade, a maior parte dos animais), quando em ciclos longos, únicos, para "descompactar e limpar a lixeira de nosso HD".

Há casos notórios de homens que dormiam pouco, como Thomas Edison e Napoleão. Um exemplo conhecido entre os brasileiros é o ex-vicepresidente Marco Maciel. O caso mais conhecido de pessoa com sono polifásico é Leonardo Da Vinci, que é descrito tendo diversas cochiladas ao longo do dia. Até o sono excessivo pode ser prejudicial ao bom funcionamento do cérebro, como no meu caso, que durmo confortavelmente umas cinco a seis horas, e com mais horas, acordo com o que chamo de "estado de goma", passando o dia meio desanimado e indisposto, que também caracteriza-se pelo que defino como "gosto de corrimão de INSS na boca". Acredito que muitos que leem estas linhas saberão experimentalmente do que falo.

Na "limpeza da lixeira", como já tratei, eliminamos os "vestígios do dia", entre outras coisas. Esta, para mim, é uma das maiores evidências da unidade mente-cérebro, pois se a mente pudesse processar seu entulho por simples lógica em seu "mundinho transcendente", como afirmam os dualistas, bastaria o fazer. Mas não. Precisamos desligar partes da máquina, e em processos de transmissões, gerando até a confusão, muito mais angustiante em alguns momentos que as dúvidas sobre o que seja a realidade dos personagens de A Origem, "botar a tralha para fora". Tal mecanismo que busca o descarregar de informações inúteis é tão poderoso e de ação inexorável (ou até levará ao colapso o funcionamento cerebral) que conduz o mais atento e experiente motorista a dormir ao volante, o trabalhador mais zeloso a dormir em meio ao barulho de máquinas, apenas para citar mais exemplos.

Poderia transcrever longos textos sobre o sono e suas questões bioquímicas, mas deixarei o principal com uma profissional do ramo:

Dra. Regeane Trabulsi Cronfli; A Importância do Sono




A plasticidade do cérebro


Conhecemos os notórios casos do brasileiro sem parte do cérebro, do menino estadunidense Tyler Plotkins, 5 anos, que vive apenas com a metade esquerda do cérebro, da menina de dez anos que perdeu metade de seu córtex, Michelle Mack, que vê perfeitamente por causa de uma massiva reorganização de seus "circuitos" cerebrais envolvidos com a visão. Consegue falar normalmente e chegou a graduar-se na high school e possui uma excepcional capacidade para guardar datas. 

Uma garota de 10 anos da Alemanha é foco de grande volume de estudos médicos. Mesmo sofrendo de eventuais espasmos, e vendo somente por um olhos, apresenta-se bastante "normal", e surpreendeu os médicos até uma imagem de ressonância de seu cérebro, mostrando um enorme volume de "vazio".






A imagem do cérebro da menina alemã (www.virtualworldlets.net).

Notemos que estas lesões, má-formações, todas as que tratamos nesta série, não anulam completamente a operação da mente, mas claramente a modificam. Também podem, se de determinada escala, não alterar extensamente aquilo que até sempre classificamos como "mental", como a personalidade, caráter ou comportamento, permitindo uma convivência social sem relativamente problema algum, mas poderá alterar gravemente as funções motoras do cérebro, como a coordenação fina, e sempre, repitamos, sempre, gerar-se-ão determinadas nuances no comportamento e desempenho peculiar em determinadas áreas relacionadas com aquelas coisas que julgamos somente mental, como a visualização de conceitos. Para determinado perfil de lesões, o autismo.

Os portadores da síndrome de Savant são exemplos disto. Alguns (também chamados simplesmente de savants) podem ter excelente talento para a música, mas suas lesões cerebrais os impedirão a vida inteira de amarrar sapatos, que é uma atividade motora-espacial simples para qualquer um de nós, "humanos médios". Outros, serão capazes de desenhar paisagens de memória com a riqueza de detalhes de um Gustave Doré, mas são incapazes de gravar mentalmente uma canção simples e a cantarolar. Outros, podem guardar datas e mais datas, inúmeros fatos ligados a estas, mas são incapazes de realizar cálculos simples. Outros, de maneira curiosa, são capazes de realizar cálculos de multiplicação com números de determinada quantidade de algarismos, mas são incapazes de realizar o mesmo cálculo com um único algarismo a mais, pois não são capazes de aprender algoritmos de multiplicação, e fazem suas proezas baseados em processos mentais próprios.



Um desenho de Stephen Wiltshire, um savant.

Assim, também conhecemos todos nós agradáveis e carinhosas crianças, que não apresentam diferenças muito sutis de comportamento com crianças de mesma idade, mas que apresentam dificuldades motoras de membros ou partes destes. Normalmente, estas dificuldades, até em graus mais elevados, como a chamada paralisia cerebral, são originárias de ações mais difusas de uma lesão por todo o cérebro, como na carência de oxigênio, nas asfixias e nos afogamentos, ou como já conheci, por determinadas intoxicações graves, infecções e febres.

Algumas vezes, um pequeno impacto numa queda conduz à grandes limitações, e outras vezes, uma grave lesão não leva a mais que algumas sequelas, até dificilmente perceptíveis. Mais uma vez, mostramos que o cérebro é plástico, e o funcionamento da mente, em seu substrato, um tanto difuso.

Aqui, mais uma vez, a analogia do cérebro-mente com o computacional hardware-software encontra suas limitações, pois mesmo o mais sofisticado computador, de milhares de processadores em paralelo, ao ter determinado condutor rompido, cessará imediatamente de operar, e se tornará uma massa inútil de circuitos e peças eletrônicas. Como vemos acima, mesmo o mais lesado cérebro, pode ainda continua a manter sua mente e o básico de sua operação.


Quando o mau funcionamento encontra a loucura

No livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Oliver Sacks, um cientista e neurologista  descreve vários casos de pacientes com funcionamentos cerebrais problemáticos que os levam, entre outras anomalias, a exatamente como mostra o título, a ter uma captura da realidade completamente absurda, embora em outras áreas, como a imaginação, determinados talentos, a capacidade de comunicar-se e raciocinar, o próprio senso moral, não apresentarem disfunção alguma.

Mostra também, algum casos de savants, destacando-se entre minhas lembranças o caso de irmãos gêmeos "prodígios matemáticos" que descobrem o "milagre" da multiplicação de números de mais de 3 algarismos.

Citando cinema, em Tempo de Despertar, (Awakenings, 1990, IMDB), também baseado em livro de Oliver Sacks, é apresentado o caso de paciente que desenvolveram uma determinada variedade do mal de Parkinson ao ponto de sua "vibração" ser tão intensa que apresentam-se totalmente paralisados - inclusive, por que tudo que o filme mostra, até mentalmente.

Estes pacientes, apesar de serem fisicamente paralisados, apresentam estranhas reações como pegar uma bola em pleno ar sem no entanto o restante do corpo reagir, assim como parar de caminhar em direção a um bebedouro por causa do quadriculado do piso ser interrompido a partir de um ponto, e serem capazes de se comunicar usando uma tábua Ouija. Mas notemos: comunicam-se apenas quando tocando na tábua, que torna-se, assim, uma "muleta" para sua atividade mental.



Para ver o quanto um mal de efeitos diretamente físicos pode interferir no dito psicológico, recomendo:



Estranhos hábitos

Quando estou chegando a um elevador num hotel, ou até mesmo no carro, em frente a minha casa, seguidamente sou tomado daquela dúvida: "Será que chaveei a porta?"

Valeria o mesmo para conferir se peguei determinado documento para uma reunião, revisando a pasta, se desliguei o computador, etc. Nosso cérebro seguidamente "pifa" e esquece pequenas atividades, não dá os "checks" nas atividades de nossas rotinas. Aliás, grande parte dos acidentes por falhas humanas ocorre deste tipo de falha, como esquecer que os ventos afetam um guindaste, e não só a carga, que cabos tensionados lateralmente tem modificadas suas tensões, etc, citando casos que sempre lembro da engenharia. Se esquecemos coisas de nossa vida profissional, o que dirá de distrações inocentes e inofensivas quanto esquecer a chave da porta dentro da geladeira, lembrando caso hilário de amigo de minha adolescência.

Quando eu ou você volta à porta, a revisa e passa a ter a segurança que a fechou, acredite amigo, você e eu somos absolutamente normais. O problema é quando, após revisar, chegamos na porta do carro e novamente tivermos a dúvida.

A dúvida é humana, a permanente dúvida é um tormento.

Igualmente, eu trabalho sempre melhor, mais confortavelmente quando coloco os documentos a processar à esquerda, os trato e repasso para a direita. Deve existir "um Francisco" israelense ou árabe que o faz, igualmente de maneira mais confortável, da direita para a esquerda. O problema é quando um indivíduo qualquer não consegue mais suportar, se torna perturbador, coisas fora de determinada ordem ou disposição, ou ainda, absurdos como só caminhar numa calçada não pisando nas junções das pedras, ou algo insano parecido.

Mais uma vez, deixemos com os profissionais:
A frase irônica define muito, de maneira simplíssima:

Eu tenho COT. É que nem TOC, mas em ordem alfabética, como as coisas devem ser.

Mas seguidamente, como todos nós, que suponho dentro de determinado limites de normalidade, simplesmente empilhamos revistas e jornais sem ordem alguma, e dormimos tranquilos com isso.

O caos do humano mostra nossa sanidade.


A angústia de não se ter a certeza de que se fechou a porta, por exemplo, é bem definida pela expressão francesa folie du doute, a 'loucura da dúvida'. A "loucura" não é se ter dúvida de que se fechou a porta, mas a permanência da dúvida, mesmo após repetidas revisões, o permanente esquecer de ter trancado a porta e após a verificação, continuar na mente a dúvida.

O cinema e a televisão tem contruído bons retratos do TOC, como o filme Melhor é Impossível (As Good as It Gets, 1997, IMDB), onde é bem mostrada a coisa absurda que são os "rituais de caminhadas" com o cuidado de pisar-se nas posições corretas e cartesianas da calçada. A série Monk mostra inclusive o conflito terrível de quando um portador de TOC encontra uma pessoa completamente inversa a seus hábitos insanos de higiene, como o detetive que prova o sabor de lama para saber sua origem, interpretado por Jason Alexander, o eterno problemático por outras vias George Costanza, entre tantos outros problemáticos, da série Seinfeld.

Momentos de TOC explícito, em Melhor é Impossível.


Somos normais quando com os pés enlameados, ou as mãos engraxadas, ou pingados de tinta, não paramos histericamente nossas atividades.

Ser higiênico é a normalidade, julgar que sempre se está sujo é loucura.

Questões com a limpeza e outros "rituais" são muito bem mostrados em Os Vigaristas (Matchstick Men, 2003).

Em O Aviador (The Aviator, 2004) é mostrada inclusive a perturbadora entrada em loops de frases ou palavras, que trava a operação da mente dos sofredores com TOC. Os "dominós" de uma mente destas iniciam uma queda que não chega a um ponto final, e ficam num ciclo que bloqueia os próximos passos de raciocínios, discursos e até mesmo os movimentos. Este sintoma é aparentado de nossos momentos atrapalhados, em que não conseguimos fazer determinada coisa nem de perto corretamente quando temos de dizer alto um número de telefone, por exemplo. A diferença é que conseguimos parar uma atividade, encerrar outra e retornar a anterior.

Uma coisa é quando falamos, por exemplo, introspectivo, demoramos umas duas repetições entre intos..., introsprec..., até finalmente acertarmos a pronúncia. Outra, é quando ficamos preso em falar "the way of the future...", e não mais conseguimos parar de dizer isto.

A confusão é o normal, a regularidade interminável é doentia.


Existe um "licor" das nossas memórias? E memórias que viciem?


Tratando novamente das memórias, tem de ficar claro que os registro dos fatos e das coisas em nosso cérebro, ainda que químico e eletrolítico, não se dá numa quantidade definida em um volume. Noutras palavras, não se dá numa "solução que contenha as memórias", ou aquilo que no passado do mundo da farmácia chamava-se "licor".[NOTA]

O acumular é na forma de um circuito difuso, "fractal", dos impulsos, e mesmo rendendo interessantes ideias para suspenses e ficção científica, como se vê em Inesquecível (Unforgettable, 1996, IMDB), não há extração de líquor (aqui, o medular, por exemplo), ou de líquidos encefálicos que abasteça a memória de alguém, nem que preserve suas lembranças. Ainda que acumulem-se neste líquido substâncias que estejam envolvidas as memórias, tal como uma "sopa de letrinhas", formada por letras que cuidadosamente formavam um soneto de Camões, ao estarem na sopa, não formam mais que um caos de letras, e voltam a ser as porções de massa que só possuem sentido para identificar que letras são, e não mais, o texto coerente anterior. Perderam seu substrato, que poderia ser, repetindo a analogia, a matrix quadriculada que coordenava as letrinhas de macarrão para expressar o poema.




Este mesmo tipo de erro é cometido pelos homeopatas, que baseados em premissas aparentemente coerentes do século XVIII, trazidas aos conceitos da Físico-Química já bem estabelecidos desde o século XIX, soam ridículas, pois sempre, qualquer que seja o fluido, existe uma agitação, e a menor variação de temperatura ocasiona uma alteração de densidade, e de gradiente em gradiente, põe-se o fluido em movimento, e não se registra mais a ordem inicial - a falácia da "memória molecular". Quem faz o amontoado de moléculas de meu cérebro, pela minha mente, produzir este texto com alguma mínima coerência e medíocre estilo é o conjunto como um todo, e não moléculas em suspensão, muito menos uma quantidade molar de neurotransmissores e íons formando um conjunto de núons, em um meme, sem as interações com todos os núons, de todos os neurônios neste (ou naquele) momento cerebral-mental, num instante específico, e inclusive, numa onda de correlações em determinada distribuição e sentido pelo cérebro.

E tal "frasco" não pode sofrer impactos intensos, nem ser muito agitado, nem mesmo, violentamente desacelerado, ou o "licor" pode perturbar-se a tal ponto que nada mais lembre, e até, nem mais funcione. Na verdade, não pode nem ser diluído com o álcool aparentemente inofensivo dos "medicamentos" homeopáticos acima de uma determinada concentração.

Aliás, mantendo o alvo principal desta série de textos em foco, esta é mais uma prova que a mente e o cérebro formam uma coisa indissolúvel, e não algo que após o "desligamento", possa ser carregado exatamente como estava no seu estado anterior, como se a mente estivesse no correspondente da "nuvem", da moderna informática. O reiniciar de nosso software, mesmo com o hardware intacto, trás perdas de dados e dificuldade de processamento, pelo menos, por algum tempo. Somos um computador meio ineficiente no backup.

NOTA: Em até grafias mais exóticas, de onde exatamente o termo médico se origina, como "líquor", ou termos mais beirando a mágica, como "elixir" - as vezes, aos nossos olhos atuais, o passado da linguagem pode parecer ridículo. A evolução dos memes tem sua pressão social e comportamental, num processo histórico-cultural, e como tal, direciona-se pelo que podemos definir como um sentido mais amplo de "moda". Que o diga a publicidade:

“Veja ilustre passageiro, o belo tipo faceiro, que o senhor tem ao seu lado. Mas, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite. Salvou-o o Rum Creosotado!”.

Falando de publicidade, nosso cérebro-mente pode ser tão influenciado pela sua química que até podemos nos viciar em coisas que somente causam alteração bioquímica indiretamente. Sendo claro: quando cheira-se cocaína, é óbvio que chega esta substância ao cérebro, igualmente quando saltamos de paraquedas, com a nossa própria adrenalina, ou as endorfinas dos esforços físicos, mas quando fazemos excessivas compras, ou relacionamo-nos horas a fio apenas pela internet, ou jogamos, ou mais exoticamente, quando nos tornamos viciados em auxiliar pessoas com dificuldade (aqueles mesmos que consomem, entre outras coisas, cocaína, por exemplo).


O vício da internet - Expresso do 7B

Como quero contingenciar minha compulsão por escrever, com a palavra, especialistas - e outros nem tanto, pois afinal de contas, isto aqui é um blog, e não uma publicação científica, e temos de manter todo o TOC sob controle:

Na verdade, para o vício em adrenalina, nem se necessitam esportes radicais:
Sobre internet e o que causa:
O vício em jogo:
O interessante do vício em jogo é que casa perfeitamente com o conceito dos "ganhos acessórios" dos vícios. O doente passa a ser dependente dos bons tratos, da pena, do estreitamento das relações familiares, como é bem mostrado no filme The Gambler (1974).

E o "divertido" vício de Becky Bloom, de Confessions of a Shopaholic (2009).
E por último, a mostra que até no mais aparente humano dos ímpetos, podemos nos tornar vítimas do funcionamento de nossa mente:


A irreal felicidade do esquecimento e da fantasia

Como os dominós mentais caem, o filme Tempo de Despertar possui um personagem chamado enfermeira Beth, que me lembra Enfermeira Betty (Nurse Betty, 2000, IMDB), um filme onde uma gentil dona de casa assiste o brutal assassinato de seu esposo e sofre um colapso, passando a viver um mundo de fantasia onde o personagem - na verdade, todas as situações - de uma novela passam a ser reais.

Este tipo de comportamento é chamado "estado de fuga", ou ainda melhor, "fuga dissociativa", caracterizado por amnésia para a identidade pessoal (aquela coisa ilusória que mostramos aqui ser o que tratamos de "o eu").



Alguns problemas com números

A primeira vez que li sobre aritmomania, devia ter meus 18 anos. Não acreditei simplemente em uma única palavra do texto, ao considerar, infantilmente, que tal comportamento fosse impossível de se estabelecer em uma mente.

Devia ser uma época que minha imaturidade me levava, dogmaticamente, a que o funcionamento da mente humana dependia apenas dele próprio - seja lá o que fosse, e não de determinados "relés" em operação no cérebro.

Passadas poucas semanas após este novo meme em minha memória, ao esperar um ônibus chamado T3 (acho que significa "transversal") em Porto Alegre, aparece uma senhora, julgo na faixa dos 60 anos, e me pergunta se naquela parada passava tal ônibus. Ao responder que sim, passou imediatamente a falar em voz bem audível, mais ou menos isso:

- "Tê" três. 3 mais a passagem de 2 e 70,  5 e 70  , 5 e 7, 12, 12 e 3, 15...

Olhei para o céu e pensei comigo mesmo: - Tá bom, entendi o recado! (Até hoje mantenho meu panteísmo com nuances de uma crença fervorosa, numa ironia típica. Hoje, acrescentaria: "UM SINAL! UM SINAL DO UNIVERSO!).

Diario del toc - ARITMOMANIA el deseo compulsivo de contar.

A aritmomania é atormentadora e não trata-se do magnífico gosto pelos números e suas relações, como em Fermat ou muitos matemáticos amadores e profissionais, ou diversos contabilistas de altíssimo nível, apaixonados pelos números em si, mas da geração inútil de operações matemáticas e seus resultados, pois convenhamos, perceber que raiz quadrada nenhuma de número primo é racional já era uma coisa brilhante ao tempo de Pitágoras, mas qual o nexo de somar o código de uma linha de ônibus com o preço da passagem?

Eis a loucura: operar com variáveis nem um pouco dependentes, para não dizer completamente separadas,e  sobre tal coisa insana, não conseguir mais parar de fazer isso.

Lembrando a ironia que fazemos em debates, entre outras tantas tolices: Se você não gosta de bom-bons, para que roubou minha bicicleta?

Com o elemento em comum de referir-se a números e matemática, mas deixe-se bem claro, com enormes diferenças, existe também a discalculia.

Minha irmã, até determinada fase da adolescência, poderia aparentar ter uma leve discalculia, mas na medida que amadureceu, e seu cérebro também, como em todos nós, passou a ser muito apta em números e matemática, como minha família em geral, e destaque-se, apresentou desempenho excelente nas cadeiras de cálculo na sua faculdade, onde seus colegas graduandos de Arquitetura normalmente penam semestres. Assim, não só a mente opera no substrato, mas muitas vezes, necessita que o substrato amadureça para operar melhor.


Consertando circuitos


Recentemente, cientistas brasileiros obtiveram a proeza de consertar um 'neurônio autista' em laboratório.

Com excelente infográfico: g1.globo.com

Devo destacar a parte que é citado que consertar um neurônio (ou memo um grande conjunto destes) não é o mesmo que consertar um cérebro inteiro. Aliás, nem copiar um cérebro inteiro implica em consertar uma mente, pois a mente é também formada por um carregamento de uma vida inteira, na identidade - "o eu" - e por períodos razoáveis, digamos dias, no entendimento de novas situações - como nos casos de pacientes que saem de coma. Mais uma vez, a natureza difusa da operação da mente se manifesta, e até a conformação das células neurais e seus conteúdos e interações no espaço e no tempo influi nos resultados e mecanicismos.

Neste tratamento em desenvolvimento ainda de seus princípios, o foco restringe-se apenas a Síndrome de Rett, numa mostra que em se tratando do cérebro, diversos mecanismos na origem podem redundar, convergir, num quadro final, ainda que amplo, de sintomas similares, como o vaso quadro que chamamos autismo.


Postura de mãos típica da síndrome de Rett (medscape.com).

Sempre lembro do drama da atriz Isabel Fillardis, com seu filho, que padece de Síndrome de West, uma forma grave de epilepsia, geralmente causada por anomalias do cérebro e que resulta em prejuízos para o desenvolvimento mental. Até mesmo um balanço entre ácidos graxos resulta em graves prejuízos para os mecanicismos cerebrais e o estabelecimento de uma mente minimamente funcional neste, como vemos de maneira brilhante, até pelo trabalho verídico dos pais em campos dos quais não eram profissionais, no filme O Óleo de Lorenzo (Lorenzo's Oil, 1992).

Para questões mais técnicas:  Adrenoleucodistrofia

Casando estes exemplos com o que vimos sobre o autismo, observamos que mesmo a recuperação do hardware cérebro não implicará em recuperação plena do software mente, restando sempre alguns bugs. Por este motivo, pessoas que passaram por severos processos de perturbação de seus processos cerebrais não recompõe plenamente sua mente naquilo que chamamos de normalidade, mesmo com alguma carga minha de preconceito e definições estritas aqui embutidas. Restarão traumas, lembranças desagradáveis, um certo nível de paranóia e mesmo, em casos mais graves, deficits diversos. Minha experiência profissional com empresas em dificuldade me levou a perceber que mesmo problemas menores na vida, como diminuição do poder aquisitivo, os processos de falência, com a mudança completa de paradigmas do que era julgado como "um plano de vida", ocasionam mudanças nítidas de comportamento, nuances de distúrbios de conduta, mudanças nítidas de caráter e até fobias diversas.

O jogo de dominós que é a mente, quando perturbado, sempre deixa algumas peças perdidas, perturbando a nova partida.



A consciência e nosso difícil autorretrato


Já abordamos que a consciência é, para meu "credo" e de muitos outros, ilusória, e aqui, só colocarei úteis links.
E um dos maiores sucessos no Knol:


Rembrandt retratando-se doente, uma mostra de sanidade mental e aceitação racional da realidade.

Na canção abaixo, descobri pela primeira vez, em coro de minha escola de primário, que tinha a capacidade de fazer arranjos musicais, e em compensação, uma enorme indisciplina para seguir a ordem apresentada por composições musicais. Tenho um desejo incontrolável para modificar o musical estabelecido. Nasci, pois, para ser um mínimo compositor musical, e como sou um lesado cerebral para a música "formal", apoio-me em computadores. Se a questão fosse mental, pura e transcendentemente, bastaria colocar a pena sobre a pauta, e fazer o que desejo, ou os dedos sobre o teclado, mas não me estimula nem um pouco música sem o som ocorrendo e meu lado esquerdo do corpo tem tanto talento para os instrumentos musicais quanto um ferreiro, por mais habilidoso que seja, tem para pintar retratos na cabeça de um alfinete.


Roda, pião
Bambeia, ô pião

O pião entrou na roda, ô pião
Roda, pião
Bambeia, ô pião

Sapateia no tijolo, ô pião
Roda, pião
Bambeia, ô pião


Passa de um lado pro outro, ô pião
Roda, pião
Bambeia, ô pião

Também a vida da gente
É um pião sempre a rodar
Um pião que também pára
Quando o tempo o faz cansar


Roda Pião - Cantiga de roda


Somos até nos nossos mais destacados talentos, assim como nos mais lúdicos e triviais, prisioneiros dos modos como opera nosso cérebro com seu corpo. Nosso julgado "eu" é além de ilusório, uma construção que tem de ser feita ao longo de toda nossa vida, com momentos de maiores realizações, como em suas fundações, com momentos de desequilíbrio e recuperação, revisões do projeto e correções, e permanente risco de perdas de controle, e temos de aceitar um final momento de destruição completa.


O delicado prumo do pião

Finalizando, o que nos torna normais, equilibrados, é o balanço razoável entre extremos de loucura. Se fôssemos completamente passíveis, não defenderíamos um parente ou vítima incapaz de uma agressão, ou nos encolheríamos num canto num incêndio. Se apenas fôssemos apenas agressivos, não resolveríamos nossas diferenças a não ser pelo uso da força, e não teríamos momentos de ternura com nossos próximos. Se fôssemos apenas de um comportamento hedonista, extremado, ou preguiçosos patológicos, não nos preocuparíamos nem um pouco com nossos semelhantes, e teríamos uma vivência social completamente impossível, quando não, nem poderíamos nos sustentar. Se fôssemos de uma comportamento absolutamente espartano, diria psiquiatricamente maníaco (embora aqui o termo permita especificações e até correções de meu texto), não teríamos prazer algum como passear no parque com os filhos e esposa ou companheiros, e sem aquela dose na hora certa de preguiça, tenderíamos ao colapso mental (ou ao infarto, antes), e assim por diante, patologia após patologia, depressão contra mania, polaridade contra polaridade, extremo contra extremo.

Em se tratando de mente, fiquemos com algo próximo do dito por Siddhartha Gautama, o "Buda", e escolhamos como sanidade o "caminho do meio", uma posição equilibrada.

Como somos primatas, somos animais preênseis. Na verdade, adoramos segurar coisas. Vide os momentos em que não sabemos onde colocamos uma caneta, e ela já está ridiculamente na nossa mão, ou quando nos atrapalhamos para fazer alguma coisa porque não largamos algum objeto. Seguidamente, me pego na cozinha com tal problema. Herança infeliz do reflexo preênsil. Nossa civilização nasce, inclusive, de mantermos objetos, e nos afetuamos a eles; basta olhar qualquer casa que chame-se lar, e lá estarão toda sorte de quinquilharias e traquitanas como memórias acessórias de viagens, eventos familiares ("dominós mentais externos") e simples ocupação de espaço por até suspeitos motivos estéticos.

Nossas maiores bibliotecas, coleções de música em diversas mídias (para não dizer os termos limitantes "discos" ou CDs) são outra mostra disto. Mas concentrando-nos em livros, o equilibrado amor aos livros, que é aquilo que tenho quando entro num sebo e encontro curioso livro criacionista que contém discurso que me interesse para escrever algo, me leva a comprá-lo, e apenas ele naquele dia, vendê-lo dias depois, já "sugado", é o mesmo impulso que exacerbado que distorcido leva pessoas à falência, ao roubo por não conseguir adquirir mais livros, relatórios, catálogos e até qualquer papel com escritos. A bibliofilia limita-se na sanidade com a insanidade da bibliomania. O TOC "possessivo", como chamo, ou colecionismo patológico, leva pessoas até a acumular, em ordem crescente de insanidade, classificados de jornal, cabos de guarda-chuva encontrados na rua, potes de iogurte vazios, cascas de ovos quebradas e até sacos de lixo coletados na rua. Profissionalmente, vi mais de um empresário após grave crise desenvolver nem tão sutis apegos patológicos a objetos inúteis.

Na cultura popular, um personagem que sofre de bibliomania é Jerry Fletcher (Mel Gibson), de A Teoria da Conspiração (Conspiracy Theory, 1997).

Para conhecer mais: Regina Wielenska; O caos e a ordem: as faces do colecionismo patológico

Para conhecer um bibliômano lendário:  Thomas Phillipps

É descrita na literatura um caso de um bibliófilo da antiguidade que passava fome para adquirir livros. Desde já grato por referências. Devo destacar que não necessariamente um bibliófilo colecione livros.
Logo, no "gene" de nossa acumulação de cultura e contrução de patrimônio, tanto individual quanto coletivo, está o "gene" de uma doença mental.


Em cada paraíso dos bibliófilos, pode vagar um bibliômano.

Se fôssemos excessivamente realistas, vendo o mundo apenas com a percepção da visão, e esta interpretada puramente de forma racionalista, não teríamos as magníficas metáforas de um Inferno de Dante, ou o fantasma da tragédia Hamlet, ou ainda as fadas de Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, nem mesmo as asas da Vitória de Samotrácia. Destruiríamos boa parte de nossos mitologias, tanto do passado como mais recentes, abatendo todos os inúmeros animais falantes de Esopo, os elfos de Tolkien e o Yoda de George Lucas (sem falar, óbvio, da imensa fauna destes universos imaginários), pois aquilo que não fosse real não seria pensável. Uma distopia cuja maior vítima seria a fantasia. Assim, muito de nossa cultura é fruto de um delírio mantido sobre racional controle, colocando os sonhos frente a nossos olhos, em todas as formas de arte, até para nisto temos as certezas que Dom Cobb só possuirá com seu totem. Como Cobb, somos os extratores permanente de nossos delírios mais profundos, para relaxarmos frente a fria e cruel realidade, desde o tempo que nos reuníamos para dividir uma carcaça ao redor da mais rústica das fogueiras. Damos poderosas asas às nossas fantasias, e pela cultura, as mantemos com os mais racionais objetivos.


AVitória de Samotrácia.


Somos, ao contrário de lógicas máquinas eletrônicas, as morais e lúdicas máquinas biológicas,
em que numa parte de nosso corpo, processam-se emoções que nos caracterizam como humanos, aquilo que há muito julgaram, pelos fisiológicos efeitos, que ficava no coração. Lá está a origem do que julgamos "eu" (ou "nós"), e que em vida, procuramos, até em desespero, mantermos em movimento.

...
Roda mundo roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração


Roda-Viva - Chico Buarque de Hollanda



Confissões...

Os subtítulos desta série de blogagens tem inspiração do livro O Despertar dos Mágicos, de Louis Pauwels e Jacques Bergier, pois como já citamos, criatividade pura é coisa que não existe.

Erudição é a poeira sacudida de um livro para dentro de um crânio vazio. - Ambrose Bierce

O número de blogagens foi fixado em 11, e não em dez, pois a fixação nos números redondos é uma mostra de TOC, assim como também se preocupar com não mostrar isso é uma mostra de neurose! ;)



Somos feitos da mesma matéria que os sonhos e nossas pequenas vidas são rodeadas pelo sono...

Shakespeare - A Tempestade




Um comentário:

Anônimo disse...

Хорошая идея, как скоро ожидается публикации нового материала и вообще стоит ждать ?