segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A Origem (VII)

...de muitos erros

O fio de Ariadne - O índice deste conjunto de postagens

As traições do subconsciente

Quem me conhece pessoalmente sabe que quando confundo algo, ou repito a ideia de outro - para não dizer ser pego num plágio barato, e especialmente de alguém notório e importante - uso a expressão "perdão, foi uma traição de subconsciente".

A história desta expressão se deve a um "lenda" sobre o compositor Noel Rosa. Conta-se que Noel, grande letrista, de rápida improvisação e inesgotável criatividade, capaz de fazer um samba sobre seus exames de escarro (ele sofreu de tuberculose, vide Ao meu amigo Edgar), não sendo um grande compositor (no sentido de composição musical, a técnica), pediu a um amigo mais capaz que avaliasse alguns rabiscos de uma nova música.

O amigo leu, e como bom músico, imediatamente viu-se a cantarolar: TA-TATA-PAPÃ-PAPA-PAPÃ-PAPÃ-TATA...* (ou coisa parecida, e exatamente encaixando com OUVIRAM DO IPIRANGA AS MARGENS PLÁCIDAS, em ritmo de samba).

*Perdão, leitor, mas música em blog é algo extremamente difícil de ser transmitido.

Imediatamente, alertou:

-Mas Noel, isto aqui é o hino nacional!

Ao que Noel lhe respondeu:

-Desculpe, foi uma 'traição do subconsciente'!

Uma outra versão, confiável, desta história encontra-se em Noel Rosa.

Esta pequena história está aqui para ilustrar que uma absoluta criatividade por parte de nossa mente é apenas uma ilusão.


Para continuarmos, guarde um tanto a imagem abaixo, e se possível, imagine a sala mostrada no negativo, onde o que é um piso e paredes pretas, sejam brancas, e as linhas divisórias, o inverso.



A ilusória isolada criatividade

O nosso cérebro, com nossa mente nele operando, sendo um captador e processador dos processos do mundo, é uma máquina um tanto caótica tratando o próprio caos que é o mundo.

Assim, o próprio personagem Ariadne de Inception é uma sutil citação, e talvez mesmo, uma “traição do subconsciente” de Christopher Nolan sobre o personagem, na mitologia grega, filha do rei Minos de Creta, que ajuda Perseus com uma linha para que se oriente no labirinto do Minotauro.

Lembram-se que num índice, noutra blogagem, citei o "fio de Ariadne"?

Já o personagem Yusuf é a forma arábica de "Joseph", o personagem bíblico do Gênesis 37-50, a quem foi dado o dom de interpretar sonhos.

Também, a própria trama de Inception poderia ser relacionada com as mirabolantes instabilidades das mentes dos personagens de identidades um tanto difusas do grande autor de histórias de ficção científica Philip K. Dick, que deram origem a Impostor (IMDB, 2001), Total Recall (IMDB, 1990), Blade Runner (IMDB, 1982), A Scanner Darkly (O Homem Duplo, IMDB, 2006), fazendo link, com Keanu Reeves, que também por outras vias, representa um personagem que no final não mostra ser exatamente o que acha que é, na trilogia, e sabe-se lá mais quantos produtos, Matrix.

Mas retornemos aos filmes a partir de Philip K. Dick: Next (O Vidente, IMDB, 2006), que por sinal, apresenta a mesma característica temporal de em instantes numa mente, verificar-se o que ocorre no futuro, e assistir-se isto no nosso presente, e no final, tudo ser irreal, de Inception. Há muito uma visão de tempo aristotélica, cronologicamente coerente, na arte, virou pó.

Ops, perdão, deslizei novamente! Mas o que interessa é que, a partir desta listagem e associações, talvez algum incauto e inocente internauta lance o pequeno hoax que Inception seja inspirado em história de
e Philip K. Dick. Lançado está o experimento.

Mas não precisamos ir tão longe numa apresentação que a criatividade pura, absoluta, virginal, não existe, basta vermos o próprio Inception, e percebermos que um diretor inglês, coloca em seus filmes elementos típicos dos filmes de 007, como as perseguições na neve, os cabos entre prédios em países 'estrangeiros' em Batman - O Cavaleiro das Trevas (enquanto o universo típico, e preferido dos fãs do vingador - título um tanto inadequado - são os becos sombrios e “domésticos” da Gotham).



Pequena pausa, muito relacionada com Inception:

Sobre Batman, a melhor história que já assisti/li do “cavaleiro das trevas” é a animação dos anos 90 (Batman: The Animated Series, IMDB, 1992–1995) no episódio onde Bruce Wayne acorda de um pesadelo em que caiu em uma armadilha (como Batman), e não é mais Batman, e sim, apenas o rico e de vida confortável Bruce Wayne, até casado com Selina Kyle, seus pais estão vivos e até Batman é outro personagem da cidade.

Entregando spoiler, descobre que está preso num sonho quando vai ler e percebe que qualquer coisa escrita é um borrão ilegível, pois a leitura é atividade do lado esquerdo, e os sonhos são produzidos no lado direito, o que já seria um enorme problema para as atividades ilegais dos personagens de Inception.
Perchance to Dream (TV episode 1992 #1.26, IMDB)

Mesmo nossos mais caóticos sonhos são fruto da estrutura e configuração de nossos cérebros.

Uma observação: quando por exemplo você sonha com algo legível, como eu mesmo já tive com a marca "Coca Cola", na verdade você não "lê" a marca, e sim, identifica seu símbolo e seu cérebro o associa com as palavras Coca-Cola.

Renderia uma grande história para um filme com o vilão Chapeleiro Louco, aliás, outra brilhante e adequada citação, até a ser dirigida por Christopher Nolan, para quem devemos retornar o fluxo desta blogagem...

Mas o mundo de Christopher Nolan e muito de sua imaginação em atividade é a existência dúbia, difusa e ilusória, a impossibilidade da certeza da própria identidade, tipicamente da neurociência contemporânea, já expostas na anedota triste que é repetida pelo personagem trágico de Memento (Amnésia, IMDB, 2000)

Citando Kuato, de Total Recall: You are what you do. A man is defined by his actions, not his memory.

Mas retornando à criatividade, somos a todo memento, perdão, momento, perturbados por dados externos, e mesmo quando honestos, compondo, em atividades criativas, com elementos neurais (dos sentidos, das captações), de nossas memórias (até, como vimos, um tanto quanto “desonestas”) e até, com fortes elementos culturais, com assumido interesse, do baú hoje gigantesco que é a cultura, desde o erudito e magnífico até o popular e o vulgar.

Assim vejo forte influência na sala em Inception onde está Maurice Fischer, o pai de Robert Fischer, no “mundo dos sonhos, talvez lá pelo terceiro nível” com a sala onde a civilização/monolito segue seu experimento de avançar a evolução humana, em 2001, de Kubrick, como visível nesta cena:


Que por sinal, a meus olhos, influencia também, em fusão com Laranja Mecânica (IMDB, 1971), também de Kubrick, o premiado clip de Lady Gaga, Bad Romance, que abre com música erudita executada em instrumental eletrônico, exatamente como a revolucionária trilha de Walter Carlos, posteriormente, Wendy Carlos, pois nem nossa mente tem nossa sexualidade biológica diretamente ligada e de relações inquebrantáveis.



Tudo pelo impacto que sabe-se que causará noutro primata pelado. (E sim, os casulos de hibernação de 2001 também aparecem.)



O mesmo Kubrick que inicia A.I. - Inteligência Artificial (IMDB, 2001), onde um robô também tem uma ilusão de que existe similarmente a nossa ilusão de “alma”, e outro pede que ele lembre-se dele e diga que “I 'am'. I was!”.* Frases do mesmo brilhante peso filosófico de:

I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser gate. All those moments will be lost in time... like tears in rain... Time to die.* - Blade Runner, IMDB - quotes

Oriundas do mesmo Philip K. Dick que nos levou à Minority Report - A Nova Lei (IMDB, 2002), onde o Spielberg de ET ganha os mesmo enquadramentos e maneiras de mostrar um mundo futurista e um tanto bizarro de Kubrick, do qual herdou para completar A.I..

Em suma, nada mais se cria, ou melhor, nunca se criou realmente coisa alguma, apenas, compomos elementos, e se desejar, pode até usar, resumidademente, copia.

Portanto, como também disse o sábio Kuato de Total Recall: Open your mind!

Como discorreu longamente Eduardo Giannetti em seu livro ‘A ilusão da alma’, com o qual concordo plenamente, os erros não foram dos grandes Aristóteles, Descartes, Locke e diversos outros, mas de todos nós, quando julgamos que isto que em nós opera seja único, indivisível, de perfeita operação e até em alguns delírios de soberba, eterno, e como tratamos aqui, de uma produção de ideias completamente independente.

cultura.updateordie.com / http://www.companhiadasletras.com.br/

Construímos, junto com uma montanha de instintos de um sofisticado primata, a ilusória alma de nós mesmos. Neste delírio, ainda nos julgamos, soberbamente, capazes de criar algo do nada.

* Possuímos uma quase patológica angústia de que nossa consciência não se preserve em meio à confusa história do universo. Desejamos, nisto, que nossa consciência seja independente não só da história do mundo, mas independente nos seus produtos, nas suas criações. Assim, não só desejamos que haja um "igual a nós" maior que controle e ordene o mundo, e que este seja responsável por um Fiat Lux, mas que sejamos nós autônomos num Fiat Idea (perdão pelo automobilístico trocadilho).

Mas se estes elementos com que compomos para a nossa “criatividade”, agora com aspas, advém dos sentidos e memória, será que nossos sentidos são seguidamente iludidos? Ou seja, as ilusões, tema que pontua Inception, existiriam mais do que julgamos inicialmente?



Antes de avançarmos, um encontro com outro moribundo, em uma cama, frente a misterioso personagem...

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