sábado, 1 de outubro de 2016

Da importância da Astronomia segundo Poincaré


De “O Valor da Ciência”, de Henri Poincaré (La Valeur de la Science, 1905)




A astronomia

Os governos e os parlamentos devem achar que a astronomia é uma das ciências que custam mais caro: o menor instrumento custa centenas de milhares de francos, o menor observatório custa milhões; cada eclipse acarreta depois de si despesas suplementares. E tudo isso para astros que ficam tão distantes, que são completamente estranhos às nossas lutas eleitorais, e provavelmente jamais desempenharão qualquer papel nelas. É impossível que nossos homens políticos não tenham conservado um resto de idealismo, um vago instinto daquilo que é grande; realmente, creio que eles foram caluniados; convém encorajá-los, e lhes mostrar bem que esse instinto não os engana, e que não são logrados por esse idealismo.

Bem poderíamos lhes falar da Marinha, cuja importância ninguém pode ignorar, e que tem necessidade da astronomia. Mas isso seria abordar a questão por seu lado menos importante.
A astronomia é útil porque nos eleva acima de nós mesmos; é útil porque é grande; é útil porque é bela; é isso que se precisa dizer. É ela que nos mostra quão pequeno é o homem no corpo e quão grande é no espírito, já que essa imensidão resplandecente, onde seu corpo não passa de um ponto obscuro, sua inteligência pode abarcar inteira, e dela fruir a silenciosa harmonia. Atingimos assim a consciência de nossa força, e isso é uma coisa pela qual jamais pagaríamos caro demais, porque essa consciência nos torna mais fortes.

Mas o que eu gostaria de lhes mostrar, antes de tudo, é a que ponto a astronomia facilitou a obra das outras ciências, mais diretamente úteis, porque foi ela que nos proporcionou um espírito capaz de compreender a natureza.

Já imaginaram como a humanidade estaria rebaixada se, sob um céu constantemente coberto de nuvens, como deve ser o de Júpiter, tivesse ignorado eternamente os astros? Acham que, num mundo como esse, seríamos o que somos? Sei bem que, sob essa abóboda sombria, teríamos sido privados da luz do Sol, necessária a organismos como os que habitam a Terra. Contudo, se me permitem, admitiremos que essas nuvens são fosforescentes e que propagam uma luz suave e constante. Já que estamos fazendo hipóteses, uma hipótese a mais não nos custará. Pois bem! Repito minha pergunta: acham que, num mundo como esse, seríamos o que somos?

É que os astros não nos enviam somente aquela luz visível e grosseira que impressiona nossos olhos materiais; é também deles que nos vem uma luz muito mais sutil, que ilumina nossos espíritos e cujos efeitos vou tentar mostrar-lhes. Já sabem o que era o homem na Terra, há alguns milhares de anos, e o que ele é hoje. Isolado em meio a uma natureza onde tudo para ele era mistério, sobressaltado a cada manifestação inesperada de forças incompreensíveis, era incapaz de ver na conduta do Universo outra coisa que não o capricho; atribuía todos os fenômenos à ação de uma multidão de pequenos gênios fantásticos e exigentes e, para agir sobre o mundo, procurava conciliá-los por meios análogos àqueles que empregamos para ganhar as boas graças de um ministro ou de um deputado. Seus próprios insucessos não o esclareciam, do mesmo modo que, hoje, um solicitador de favores rejeitado não desanima a ponto de parar de solicitar.

Hoje, não solicitamos mais à natureza: nós a comandamos, porque descobrimos alguns de seus segredos, e a cada dia descobrimos outros novos. Nós a comandamos em nome de leis que ela não pode recusar, porque são as suas leis; não lhe pedimos que mude desvairadamente essas leis: somos os primeiros a nos submeter a elas.

Naturae non imperatur nisi parendo.

Nota do tradutor: “Não se domina a natureza senão obedecendo.”

Que mudança nossas almas tiveram que sofrer para passar de um estado ao outro! Seria possível que, sem as lições dos astros, sob o céu perpetuamente nublado que acabo de supor, elas tivessem mudado tão depressa? Teria sido a metamorfose possível? — ou, pelo menos, não teria ela sido muito mais lenta?

E, antes de mais nada, foi a astronomia que nos ensinou que há leis. Os caldeus, os primeiros que olharam o céu com alguma atenção, bem viram que aquela quantidade de pontos luminosos não era uma multidão confusa, errando ao acaso, mas antes um exército disciplinado. Sem dúvida, as regras dessa disciplina lhes escapavam, mas o espetáculo harmonioso da noite estrelada bastava para lhes dar a impressão da regularidade, e isso já era muito. Aliás, Hiparco, Ptolomeu, Copérnico e Kepler discerniram essas regras, uma após outra, e, enfim, é inútil relembrar que foi Newton que enunciou a mais antiga, a mais precisa, a mais simples, a mais geral de todas as leis naturais.

Então, advertidos por esse exemplo, olhamos melhor nosso pequeno mundo terrestre e ali também, sob a desordem aparente, reencontramos a harmonia que o estudo do Céu revelara. Também ele é regular, também ele obedece a leis imutáveis, mas elas são mais complicadas, em conflito aparente umas com as outras, e um olho que não estivesse acostumado a outros espetáculos só teria visto ali o caos e o reino do acaso ou do capricho. Mesmo que não conhecêssemos os astros, alguns espíritos ousados talvez tivessem procurado prever os fenômenos físicos; mas seus insucessos teriam sido frequentes, e eles só teriam provocado o riso do vulgo; não vemos que, mesmo hoje em dia, algumas vezes os meteorologistas se enganam, e certas pessoas são levadas a rir deles?

Quantas vezes os físicos, desgostosos com tantos insucessos, não se teriam deixado levar pelo desânimo, se não tivessem tido o exemplo brilhante do sucesso dos astrônomos para sustentar sua confiança? Esse sucesso lhes mostrava que a natureza obedece a leis; só lhes restava saber quais eram essas leis; para isso, só precisavam de paciência, e tinham o direito de pedir que os céticos confiassem neles.

Não é só isso: a astronomia não nos ensinou apenas que há leis, mas que essas leis são inelutáveis, que não se transige com elas; de quanto tempo precisaríamos para compreendê-lo, se só tivéssemos conhecido o mundo terrestre, onde cada força elementar nos aparece sempre como se estivesse em luta com outras forças? Ela nos ensinou que as leis são infinitamente precisas e que, se as que enunciamos são aproximativas, é porque nós as conhecemos mal. Aristóteles, o espírito mais científico da Antiguidade, ainda concedia um papel ao acidente, ao acaso, e parecia pensar que as leis da natureza, ao menos neste mundo, só determinam as grandes características dos fenômenos. Como a precisão sempre crescente das predições astronômicas contribuiu para corrigir um erro que teria tornado a natureza ininteligível!

Mas essas leis não são locais, variáveis de um ponto a outro, como as que os homens fazem? O que é a verdade num pedacinho do Universo — no nosso globo, por exemplo, ou em nosso pequeno sistema solar — não vai tornar-se erro um pouco mais longe? Assim, não podemos nos perguntar se as leis que dependem do espaço não dependem também do tempo, se não são simples hábitos, por conseguinte transitórias e efêmeras? É ainda a astronomia que vai responder a essa pergunta. Vejamos as estrelas duplas: todas descrevem cônicas; assim, por maior que seja o alcance do telescópio, ele não atinge os limites do domínio que obedece à lei de Newton.

Até a simplicidade dessa lei é uma lição para nós; quantos fenômenos complicados contidos nas duas linhas de seu enunciado! As pessoas que não entendem de mecânica celeste podem ao menos percebê-lo, ao ver a espessura dos tratados dedicados a essa ciência; então pode-se esperar que a complicação dos fenômenos físicos nos dissimule igualmente não sei que causa simples, ainda desconhecida.

Portanto, foi a astronomia que nos mostrou quais são os caracteres gerais das leis naturais; mas entre esses caracteres há um — o mais sutil e mais importante de todos — sobre o qual lhes pedirei permissão para insistir um pouco.

Como a ordem do Universo era compreendida pelos antigos — por exemplo, por Pitágoras, Platão ou Aristóteles? Era ou um modelo imutável, fixado de uma vez por todas, ou um ideal do qual o mundo buscava aproximar-se. Assim ainda pensava o próprio Kepler quando, por exemplo, investigava se as distâncias dos planetas ao Sol não tinham alguma relação com os cinco poliedros regulares. Essa ideia nada tinha de absurdo, mas era estéril, já que não é assim que a natureza é feita. Foi Newton que nos mostrou que uma lei é apenas uma relação necessária entre o estado presente do mundo e seu estado imediatamente posterior. Todas as outras leis descobertas depois não são outra coisa: em suma, são equações diferenciais; mas foi a astronomia que nos forneceu o primeiro modelo, sem o qual, sem dúvida, teríamos vagueado ainda por muito tempo.




Foi também ela que melhor nos ensinou a desconfiar das aparências. No dia em que Copérnico provou que o que se pensava ser mais estável estava em movimento, que o que se pensava ser móvel era fixo, mostrou-nos quão enganadores podiam ser os raciocínios infantis que provêm diretamente dos dados imediatos de nossos sentidos; é verdade que suas ideias não triunfaram sem dificuldade, mas, depois desse triunfo, não há mais preconceito inveterado que não sejamos capazes de abalar. Como estimar o preço da nova arma assim conquistada?

Os antigos acreditavam que tudo era feito para o homem, e é preciso crer que essa ilusão é bem tenaz, já que é preciso combatê-la incessantemente. Contudo, precisamos desvencilhar-nos dela; caso contrário, seremos apenas eternos míopes, incapazes de ver a verdade. Para compreender a natureza é preciso poder sair de si mesmo, por assim dizer, e contemplá-la de vários pontos de vista diferentes; sem isso, dela conheceremos sempre apenas um lado. Ora, sair de si mesmo é algo que não pode fazer aquele que tudo relaciona a si mesmo. Quem, então, nos livrou dessa ilusão? Aqueles que nos mostraram que a Terra não é mais que um dos menores planetas do sistema solar, e que o próprio sistema solar não é mais que um ponto imperceptível nos espaços infinitos do Universo estelar. Ao mesmo tempo a astronomia nos ensinava a não nos assustarmos com os grandes números, e isso era necessário não só para conhecer o céu, mas para conhecer a própria Terra; isso não era tão fácil quanto nos parece hoje.

Tentemos retroceder e imaginar o que pensaria um grego a quem disséssemos que a luz vermelha vibra 400 milhões de milhões de vezes por segundo. Sem dúvida alguma, uma tal asserção lhe pareceria pura loucura, e ele jamais se rebaixaria ao ponto de verificá-la. Hoje, uma hipótese não nos parecerá mais absurda porque nos obriga a imaginar objetos muito maiores ou muito menores do que aqueles que nossos sentidos são capazes de nos mostrar, e não compreendemos mais esses escrúpulos que tolhiam nossos predecessores e os impediam de descobrir certas verdades simplesmente porque as temiam. Mas por quê? Porque vimos o céu crescer, e crescer incessantemente; porque sabemos que o Sol está a 150 milhões de quilômetros da Terra, e que as distâncias das estrelas mais próximas são centenas de milhares de vezes maiores ainda. Habituados a contemplar o infinitamente grande, tornamo-nos aptos a compreender o infinitamente pequeno. Graças à educação que recebeu, nossa imaginação — assim como o olho da águia, que não é ofuscado pelo Sol — pode olhar de frente a verdade.

Estava eu errado ao dizer que foi a astronomia que nos deu uma alma capaz de compreender a natureza? Que, sob um céu sempre nebuloso e privado de astros, a própria Terra seria para nós eternamente ininteligível? Que nela não veríamos mais que o capricho e a desordem e que, não conhecendo o mundo, não poderíamos dominá-lo? Que ciência poderia ter sido mais útil? Ao falar assim, coloco-me no ponto de vista daqueles que só apreciam as aplicações práticas. É verdade que esse ponto de vista não é o meu; ao contrário, se admiro as conquistas da indústria, é sobretudo porque, ao nos livrar das preocupações materiais, um dia elas darão a todos o lazer de contemplar a natureza. Não digo que a ciência é útil porque nos ensina a construir máquinas; digo que as máquinas são úteis porque, ao trabalhar para nós, um dia nos deixarão mais tempo livre para fazer ciência. Mas enfim não é indiferente observar que não há discordância entre os dois pontos de vista e que, tendo o homem perseguido um objetivo desinteressado, todo o resto lhe veio por acréscimo.

Augusto Comte disse, não sei onde, que seria inútil procurar conhecer a composição do Sol, porque esse conhecimento não poderia ser de nenhuma utilidade para a sociologia. Como pôde ele ter a visão tão curta? Não acabamos de ver que foi pela astronomia que, usando a linguagem de Comte, a humanidade passou do estado teológico ao estado positivo? Isso ele percebeu, porque era fato consumado. Mas como não compreendeu que o que restava fazer não era menos importante, e não seria menos proveitoso? A astronomia física, que ele parece condenar, já começou a nos dar frutos e nos dará muitos outros, pois data apenas de ontem.

Antes de mais nada, descobriu-se a natureza do Sol, que o fundador do positivismo queria nos interditar, e ali encontramos corpos que existem na Terra e que nela tinham permanecido despercebidos; por exemplo, o hélio, esse gás quase tão leve quanto o hidrogênio. Para Comte, já era um primeiro desmentido. Mas devemos à espectroscopia um ensinamento bem mais precioso: nas estrelas mais distantes ela nos mostra as mesmas substâncias; poderíamos nos perguntar se os elementos terrestres não eram devidos a algum acaso que tivesse aproximado átomos mais tênues, para construir o edifício mais complexo que os químicos chamam de átomo; se, em outras regiões do Universo, outros encontros fortuitos não podiam ter engendrado edifícios inteiramente diferentes. Sabemos agora que não é nada disso, que as leis da nossa química são leis gerais da natureza, e que não devem nada ao acaso que nos fez nascer na Terra.

Mas — dir-se-á — a astronomia deu às outras ciências tudo o que podia dar-lhes, e agora que o céu nos forneceu os instrumentos que nos permitem estudar a natureza terrestre, poderia, sem perigo, encobrir-se para sempre. Depois do que acabamos de dizer, será necessário responder a essa objeção? Poderíamos ter raciocinado do mesmo modo no tempo de Ptolomeu; também naquela época acreditava-se saber tudo, e ainda se tinha quase tudo a aprender.

Os astros são laboratórios grandiosos, cadinhos gigantescos, com os quais químico algum poderia sonhar. Reinam neles temperaturas que não podemos imaginar. Seu único defeito é o de ser um pouco distantes; mas o telescópio vai aproximá- los de nós, e então veremos como a matéria ali se comporta. Que sorte para o físico e o químico!

A matéria ali se mostrará a nós sob mil estados diversos, desde os gases rarefeitos, que parecem formar as nebulosas, e que se iluminam com não sei que clarão de origem misteriosa, até as estrelas incandescentes e os planetas tão próximos, e contudo tão diferentes de nós.

Talvez mesmo os astros nos ensinem um dia alguma coisa sobre a vida. Isso parece um sonho insensato, e não vejo absolutamente como se poderia realizar; mas a química dos astros também não teria parecido, há cem anos, um sonho insensato?

Porém, limitemos nossos olhares a horizontes menos distantes, e nos restarão ainda promessas menos aleatórias e bastante sedutoras.

Se o passado nos deu muito, podemos estar certos de que o futuro nos dará mais ainda.

Em suma, é inacreditável até que ponto a crença na astrologia foi útil à humanidade. Se Kepler e Tycho Brahe puderam viver, foi porque vendiam a reis ingênuos predições baseadas nas conjunções dos astros. Se esses príncipes não tivessem sido tão crédulos, continuaríamos talvez a crer que a natureza obedece ao capricho, e ainda estaríamos estagnados na ignorância.



Fonte:

O Valor da Ciência, tradutora: Maria Helena Franco Martins, Editora Contraponto, 1995, ISBN: 978-85-85910-02-0


Leitura extra

Ricardo Roberto Plaza Teixeira; O VALOR DE O VALOR DA CIÊNCIA, DE POINCARÉ, CEM ANOS DEPOIS DE SUA PUBLICAÇÃO - www2.unifap.br

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