sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Poincaré, sobre evolução, origem da vida e “leis” científicas


Um trecho de “O Valor da Ciência”, de Henri Poincaré (La Valeur de la Science, 1905), o qual pretendo tratar no futuro:

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E já que pronunciei a palavra “evolução”, desfaçamos mais um mal-entendido. Dizemos com frequência “Quem sabe se as leis não evoluem, e se não descobriremos um dia que, no período carbonífero, não eram o que são hoje?”. O que devemos entender com isso? Deduzimos o que cremos saber do estado passado de nosso globo do seu estado presente. E essa dedução se faz por meio das leis supostamente conhecidas. Sendo a lei uma relação entre o antecedente e o consequente, permite-nos, com a mesma facilidade, deduzir o consequente do antecedente, isto é, prever o futuro, e deduzir o antecedente do consequente, isto é, deduzir o passado do presente.

Pela lei de Newton, o astrônomo que conhece a situação atual dos astros pode deduzir, a partir desta, sua situação futura, e é o que faz quando constrói efemérides; e pode igualmente deduzir, da situação atual, sua situação passada. Os cálculos que assim poderá fazer não poderão informá-lo de que a lei de Newton deixará de ser verdadeira no futuro, já que essa lei é precisamente seu ponto de partida; também não poderão informá-lo de que ela não era verdadeira no passado.

Ainda no que concerne ao futuro, suas efemérides poderão ser um dia verificadas, e nossos descendentes talvez reconheçam que elas eram falsas. Mas no que concerne ao passado, o passado geológico que não teve testemunhas, os resultados de seu cálculo, como aqueles de todas as especulações em que procuramos deduzir o passado do presente, escapam, por sua própria natureza, a todo tipo de controle. De modo que se as leis da natureza não fossem as mesmas na idade carbonífera e na época atual, jamais poderíamos sabê-lo, já que só podemos saber dessa idade aquilo que deduzimos da hipótese da permanência dessas leis.
Dirão talvez que essa hipótese poderia levar a resultados contraditórios, e que seremos obrigados a abandoná-la. Assim, no que concerne à origem da vida, podemos concluir que sempre houve seres vivos, já que o mundo atual nos mostra sempre a vida brotando da vida; e podemos concluir também que nem sempre houve vida, já que a aplicação das leis atuais da física no estado presente de nosso globo nos informa de que houve um tempo em que esse globo era tão quente, que a vida nele era impossível. Mas as contradições desse tipo sempre podem ser eliminadas de duas maneiras: podemos supor que as leis atuais da natureza não são exatamente aquelas que admitimos; ou então, supor que as leis da natureza são atualmente aquelas que admitimos, mas que nem sempre foi assim.
É claro que as leis atuais jamais serão suficientemente bem conhecidas para que não se possa adotar a primeira dessas duas soluções, e para que sejamos forçados a concluir pela evolução das leis naturais.
Por outro lado, suponhamos uma tal evolução: admitamos, se quiserem, que a humanidade dure o bastante para que essa evolução possa ter testemunhas. O mesmo antecedente produzirá, por exemplo, consequentes diferentes no período carbonífero e no período quaternário. Evidentemente, isso quer dizer que os antecedentes são mais ou menos iguais; se todas as circunstâncias fossem idênticas, o período carbonífero se tornaria indiscernível do período quaternário.
Evidentemente não é isso que se supõe. O que permanece é que tal antecedente, acompanhado de tal circunstância acessória, produz tal consequente; e que o mesmo antecedente, acompanhado de outra circunstância acessória, produz outro consequente. O tempo não tem influência na questão.
A lei, tal como a teria enunciado a ciência mal informada, e que tivesse afirmado que determinado antecedente produz sempre determinado consequente, sem levar em consideração as circunstâncias acessórias, essa lei — digo —, que era apenas aproximada e provável, deve ser substituída por uma outra lei, mais aproximada e mais provável, que faz intervirem essas circunstâncias acessórias.
Portanto, recaímos sempre no mesmo processo que analisamos acima, e se a humanidade viesse a descobrir alguma coisa desse tipo, não diria que foram as leis que evoluíram, mas sim as circunstâncias que se modificaram.

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