quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Pontos cosmológicos - 6

Entre o Axioma e a Percepção: Onde Termina a Fé e Começa o Cosmos

O debate sobre a origem do Universo frequentemente escorrega para o campo da "crença", não por falta de evidências, mas por uma confusão fundamental sobre o que é a ciência e o que é a linguagem que a descreve. O comentário de um frequentador de redes sociais há alguns anos exemplificou o solipsismo científico: a ideia de que, por sermos limitados pelos nossos sentidos, a ciência seria apenas uma forma padronizada de fé. No entanto, uma análise rigorosa revela falhas estruturais nessa premissa.

1. O Equívoco da "Matemática Prévia"

O interlocutor sugere que uma "causa matemática" deve preceder o físico. Como bem pontuado na nossa resposta de então, a Matemática não é uma entidade ontológica que flutua no vazio esperando para ser realizada. Ela é um sistema de linguagem e lógica construído sobre axiomas.

Confundir a ferramenta (Matemática) com a estrutura (Leis Físicas) é um erro de categoria. Se o Universo surgiu de uma singularidade, as leis que o regiam eram físicas; a nossa capacidade de descrevê-las matematicamente é um desenvolvimento posterior, não uma precondição mística.

2. A Armadilha do Sentimentalismo Sensorial

Um argumento do tipo usado na ocasião de que a molécula de O2, oxigênio molecular, é apenas "simbólica" e dependente da percepção humana é um ataque comum à objetividade científica. Embora seja verdade que percebemos o mundo através de filtros sensoriais, a ciência se valida pela capacidade preditiva e pela falseabilidade, não pela "fé".

O oxigênio não precisa que acreditemos nele para sustentar a combustão; as propriedades químicas dos elementos permanecem constantes quer as observemos ou não. A ciência não busca uma "verdade absoluta em sua pura essência" (um conceito metafísico), mas sim modelos que descrevam o comportamento da realidade com precisão crescente. Reduzir isso à "crença" é ignorar que, ao contrário da fé, a ciência se corrige diante da evidência.

3. A Caixa de Schrödinger e o Vazio Argumentativo

O uso da metáfora da "caixa fechada" pelo interlocutor naquele momento tornou-se um exercício de retórica vazia. Ao afirmar que "tudo" pode estar dentro da caixa e que a impossibilidade de observação permite qualquer existência (incluindo a de um deus), ele recorre ao argumentum ad ignorantiam (apelo à ignorância).

Em ciência, a impossibilidade de observar algo não torna todas as hipóteses igualmente válidas. A inexistência de prova não é prova de existência. Nossa resposta procurou ser cirúrgica ao apontar que "filosofar em ciência é um romantismo": sem dados, qualquer afirmação sobre o que está "fora da caixa" ou antes do tempo é mera especulação poética, não conhecimento.

4. O Universo Eterno vs. O Início Absoluto

O interlocutor apresentou uma falsa dicotomia: ou tudo foi criado do nada, ou criou a si mesmo. Ele ignora a terceira via, sustentada por modelos como o Big Bounce: a possibilidade de um Universo eterno e cíclico.

Modelos cosmológicos modernos sugerem que o que chamamos de Big Bang pode ter sido apenas uma fase de transição de um estado anterior. Se o Universo for eterno, a pergunta "o que havia antes?" perde o sentido, assim como a necessidade de uma "causa matemática" externa.

Conclusão: A Ética do Silêncio

A busca por respostas é, de fato, um motor humano, mas a sabedoria reside em saber onde termina o fato e começa a conjectura. Ao confrontar o interlocutor, reafirmamos o compromisso da ciência com o limite do observável. Admitir que não sabemos, ou que certas perguntas podem não ter sentido dentro das leis físicas conhecidas, é um ato de honestidade intelectual superior à tentativa de preencher lacunas cósmicas com projeções da psique humana.


Nenhum comentário: